Cleber Dias
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Tive o privilégio de receber vários comentários críticos sobre o artigo Desafios e oportunidades do novo mercado fitness. O caráter crítico desses comentários não deve obscurecer a generosidade do gesto de criticar. Críticas induzem a reflexão, motivo pelo qual as agradeço sinceramente.
Mas o que diziam em linhas gerais essas críticas? Primeiro, que as transformações em curso no mercado fitness têm como principal e última consequência a desvalorização dos profissionais de educação física e a degradação da qualidade dos serviços ofertados por academias. Mais ou menos no mesmo sentido, diziam também que a ênfase atual sobre atividades como o marketing digital ou estratégias de gestão é tão somente outro expediente que apenas aprofunda esse mesmo processo de desvalorização e de deterioração dos serviços de treinamento físico.
De minha parte, sinto-me como que na obrigação de acrescentar um par de observações a esse respeito. Pois se críticas induzem a reflexão, diálogos instituem trocas.
A ênfase sobre as supostas consequências de transformações gerenciais e tecnológicas apenas sobre profissionais de educação física minimiza ou desconsidera mesmo que o mercado de academias se constitui por muitos agentes. Esse mercado não é formado apenas pelos professores, mas também pelos proprietários, pelos investidores, pelos fabricantes de equipamentos, pelos distribuidores ou revendedores e sobretudo pelos alunos, entre muitos outros que se poderiam citar. Nesse contexto, desprezar os múltiplos pontos de vistas dos demais elementos desse ecossistema, em favor única e exclusivamente do ponto de vista dos profissionais, impõem uma redução simplificadora inadequada a respeito da dinâmica de funcionamento desses mercados.
Cada um desses grupos tem seus próprios interesses, que quase sempre concorrem entre si. Alunos querem academias com melhor infraestrutura, melhores serviços e menores preços, o que pode ser difícil de conseguir simultaneamente. Enquanto isso, proprietários querem mensalidades mais altas e custos mais baixos, de modo a elevarem suas margens de lucro, o que também não é fácil de se obter, como bem sabem os empresários do setor. Professores, por seu turno, querem melhores remunerações e condições de trabalho, que entre outras coisas pode dizer respeito a menos alunos sob suas responsabilidades, o que diminuiria a oferta de serviços, tendendo a elevar os preços, frustrando, assim, as expectativas dos consumidores. Na impossibilidade de compatibilizar esses interesses conflitantes, o que é frequente, quais deles deve prevalecer e porquê?
Em grande medida, este é um problema de natureza judicativa, isto é, da ordem do julgamento. Nesse sentido, é grande a tentação para sair em defesa dos profissionais de educação física. Além de serem gente da minha classe e do meu convívio, alguns dos quais se dignaram a me escrever suas opiniões, seria ainda algo politicamente simpático. Tratam-se de trabalhadores afinal. Pareceria até uma indiferença cruel não considerar as dificuldades cotidianas que de fato afetam essa classe de trabalhadores.
Todavia, se tirarmos o problema dessa esfera dos julgamentos e o inscrevermos na ordem das dinâmicas sociais da economia do fitness, a coisa ganha novas camadas de complexidade.
Ao lado dos cerca de 60 mil trabalhadores formais desse segmento – a que devem se somar os trabalhadores informais e os microempreendedores individuais, cujo número seguramente é superior, podendo chegar a 140 mil pessoas ou mais – existe um exército de clientes, ávidos por consumirem serviços de treinamento físico ao menor preço possível. Estima-se que existam cerca de 10 milhões de pessoas inscritas em academias no Brasil. Observe-se a ordem de grandeza do contingente, 50 vezes maior que o provável número total de profissionais de educação física ocupados no setor.
Esses consumidores geralmente são também trabalhadores, que destinam parte de suas rendas para usufruir serviços que possam melhorar suas saúde e bem-estar. Esse grupo não mereceria também uma dose de solidariedade? Porque privilegiar os profissionais e não os consumidores? Novamente, problemas de julgamento.
Se assumirmos o ponto de vista dos consumidores e não dos prestadores de serviços, a ênfase gerencial atual das academias sobre infraestrutura, relacionamento ou atendimento pode talvez corresponder melhor as expectativas desse grupo. Não é líquido e certo que clientes de academias desejem apenas ou mais que tudo treinamento físico eficiente, tal como supostamente prescrito pelas últimas orientações científicas – deixando de lado todas as controversas que envolvem os especialistas do assunto, que usualmente não entram em acordo com facilidade acerca de quais são afinal as últimas orientações científicas para um treinamento eficiente. Dados de uma consultoria baseados em pesquisas junto a 150 mil clientes de academias apontou que apenas entre 10 e 15% desse público se dizia insatisfeito com os resultados do treinamento físico, mesmo em “academias de baixo custo” que não enfatizam esse aspecto do serviço. Além disso, mesmo que tais consumidores estivessem preocupados mais que tudo com os resultados aferidos pelas balanças, pelas medidas antropométricas ou pelos índices de colesterol, eventuais aumentos de remunerações desses profissionais não necessariamente se converteriam em melhor qualidade do trabalho ou do serviço prestado.
O que uma elevação dos preços dos serviços fitness poderia de fato permitir mais obviamente é um aumento das remunerações dos profissionais ocupados no setor, incluindo recepcionistas e faxineiras, o que a princípio não pareceria nada mal. No entanto, uma dinâmica desse tipo poderia também impedir que certos consumidores ingressassem ou se mantivessem inscritos em academias, no que os economistas chamariam, no seu peculiar e exotérico jargão, de “inelasticidade-preço da demanda”. Diante desta indisposição ou impossibilidade dos consumidores de pagarem mais, haveria diminuição do número de clientes nas academias, o que por sua vez diminuiria também a demanda pelos serviços dos profissionais ocupados ali, logo deprimindo o número de postos de trabalho disponíveis. Nesse caso, ao invés de desvalorização profissional ou precarização do trabalho por meio de redução das remunerações, teríamos desemprego. Parece melhor? Problema judicativo talvez.
Nessa equação, faltam ainda os empresários ou proprietários, para não citar os demais elos dessa cadeia. No imaginário popular, empresários são habitualmente representados como capitalistas responsáveis pela exploração da classe trabalhadora em benefício de uma vida fausta e luxuosa. Todavia, na realidade, as coisas podem ser diferentes, ainda que a caricatura apreenda parte da verdade. A maioria esmagadora dos empresários brasileiros, contudo, vive longe de iates e helicópteros. Levantamentos do IBGE apontam que 77% das empresas brasileiras não tem funcionários e apenas 2% contam mais de 10. Do total de empresas no Brasil, nada menos que 99% são classificadas como micro ou pequenas.
No mercado fitness, em particular, estimativas – um tanto obscuras, é verdade – já sugeriram que até 80% das academias funcionam apenas com o proprietário. Desconheço fontes mais confiáveis, mas por dedução abalizada, suponho tratar-se de uma estimativa aparentemente razoável.
Como se nota a partir desses poucos exemplos, as dinâmicas sociais de funcionamento de mercados são complexas, tal como os mecanismos de determinação de preços e salários. O estabelecimento de remunerações para os profissionais de educação física em patamares considerados mais justas pelos próprios profissionais frequentemente esbarra nos interesses de outros atores implicados nesses mercados, a começar pelos consumidores. Perguntados se gostariam que seus treinadores recebessem mais e melhor, seus alunos possivelmente responderiam que sim, lógico, adorariam ver aquelas pessoas simpáticas e solícitas recebendo maiores remunerações. Qual aluno não gostaria de ver o seu professor um pouquinho mais feliz e satisfeito? Lembrados, porém, que esse aumento deveria ser custeado por uma elevação dos preços pagos por eles mesmos, os alunos-consumidores, será que a resposta permaneceria a mesma? Nunca fiz esse experimento, mas receio que a resposta fosse não.
O barateamento no consumo de produtos e serviços diversos, incluindo os do mercado fitness, na verdade têm um custo social e ambiental. Trata-se de um problema muito mais geral e profundo, que está presente no mercado fitness, tal como em todos os ramos da economia. As roupas e os tênis baratos que temos às nossas disposições nos shoppings e camelódromos dependem do emprego de mão de obra infantil na China, no Vietnã e na Tailândia. Nesse contexto, exibir extensas e desnecessárias coleções de roupas e sapatos deveria de certo modo ser vergonhoso, mas não é.
Alimentos baratos no supermercado, sejam naturais ou industrializados, igualmente dependem da imposição de condições de remuneração aviltantes ao agricultor e também aos trabalhadores de vários ramos do setor de serviços, tais como caminhoneiros e estoquistas. Não fosse assim, a atual orgia de consumo em que todos nós vivemos, seja relativa à roupas, comidas ou academias, não seria factível. Elevadas quantidade de consumo de cerveja, por exemplo, apenas são possíveis em razão dos preços reduzidíssimos com que se comercializa essas bebidas atualmente. Essa estrutura de preços fundamenta-se, em certa medida pelo menos, no mesmo processo de superexploração do trabalho que afeta trabalhadores de supermercados ou de academias. Profissionais de educação física acaso se sensibilizam ou se solidarizam com a desvalorização dos trabalhadores de todos esses ramos de produção ou apenas desfrutam como consumidores das vantagens ofertadas pelo acesso barato e facilitado a tudo isso, tal como fazem os clientes de academias?
Em todo caso, a manutenção de baixas remunerações de trabalhadores é parte fundamental, ainda que não exclusiva, do mecanismo que assegura as condições de funcionamento e manutenção dessa nossa sociedade do baixo custo e dos elevados níveis de consumismo. Nós, os privilegiados da sociedade, estaremos de fato dispostos a arcar com as consequências do fim desse regime?
Se todos os custos de produção de um automóvel, por exemplo, refletissem preços razoáveis da cadeia produtiva implicada no processo, incluindo o trabalho dos trabalhadores e os danos ambientais da mineração para a obtenção dos minérios empregados depois para a fabricação desses produtos, seus preços seriam proibitivos e não teríamos cidades congestionadas e poluídas. Tavez estívessemos todos utilziando bicicletas, diminuindo também o interesse ou a necessidade de pagar por academias. Todavia, no fim das contas, preferimos acesso crescente a automóveis por meio do barateamento do preço desses produtos ou preservação ambiental e salários justos para os trabalhadores?
De maneira um tanto abstrata, está aí também a principal e mais profunda natureza dos problemas do mercado fitness. Ao destacar este ou aquele elemento do funcionamento desses mercados, portanto, não há nos meus comentários nenhum elogio ou celebração. Minha intenção é analítica, não proselitista. Como tal, meu objetivo limita-se a tentar apreender a lógica do sistema, o que não é pouco, nem trivial. E como disse o Capitão Nascimento, famoso personagem do filme Tropa de Elite, o sistema é foda.
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