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Universidades e inovação criativa

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias

Depois do sertanejo, o funk está entre os ritmos mais ouvidos no Spotfy. Artistas como Anita conquistam repercussão internacional cantando e dançando funk. Produtores musicais como KondZila ganham notoriedade dedicando-se inteiramente ao funk e ao que ele mesmo chama “conteúdo de favela”. O canal do KondZilla no YouTube tem 65 milhões de inscritos e é o quarto maior canal de música do mundo nessa plataforma.


O que pouca gente sabe, contudo, é que parte da história desse fenômeno envolve uma pesquisa acadêmica conduzida em uma universidade pública brasileira.


Em meados da década de 80, o funk era um assunto de polícia muito mais do que de cultura. Na época, reportagens sobre o assunto comentavam com perplexidade acerca dos “bailes de corredor”, em que jovens pobres da periferia do Rio de Janeiro, organizados em diferentes grupos, chamados então de “galeras”, participavam de um espantoso ritual de enfrentamento.


Em certo momento do baile, tinha início um confronto previsível e orquestrado entre duas “galeras”. A dimensão claramente planejada era um dos aspectos que imprimia dimensões ritualísticas a essa luta. Essas “galeras” mantinham-se afastadas entre si por poucos metros de distância, formando assim um “corredor”, que dava nome a esse tipo de baile e também os dividia em dois lados: o “lado A” e o “lado B”, conforme os termos empregados na época e que até hoje impregnam o vocabulário das comunidades do Rio de Janeiro. Daí em diante restava uma luta física brutal entre as “galeras” desses dois lados.


Se você nunca viu, assista aqui a um vídeo sobre um “baile de corredor”.


Um jovem antropólogo que cursava o mestrado no prestigiado Museu Nacional da UFRJ decidiu estudar o assunto. Como é praxe em pesquisas antropológicas, Hermano Vianna mergulhou no universo que estava investigando. Nesse caso, um mergulho nesse mundo implicava frequentar assiduamente os bailes funks. E foi precisamente isso que ele fez.


No convívio, como também é comum em pesquisas desse tipo, o antropólogo estabeleceu relações de mais proximidade com alguns participantes desses bailes, geralmente chamados de “informantes” ou “interlocutores privilegiados”. Com alguns deles, com quem o diálogo e o convívio se tornaram mais estreitos, o antropólogo estabeleceu, inclusive, vínculos afetivos e relações de amizade, como também é comum e na verdade quase inevitável em pesquisas dessa natureza.


O principal informante ou interlocutor da pesquisa de Hermano Vianna sobre o funk, de quem ele de fato se tornou amigo, era responsável pelo repertório e execução das músicas de vários bailes da cidade, figuras chamadas, nesse contexto, de “disque jóqueis” ou “DJs”. Seu nome era Fernando Luís, mais conhecido como DJ Marlboro.


Na ocasião, DJ Marlboro já era um agente em posição privilegiada no circuito dos bailes funks do Rio de Janeiro, sendo responsável por muitos bailes e até mesmo participando de programas de pequenas rádios. Um desses programas, na rádio Tropical FM, fazia bastante sucesso. Diante da boa acolhida de um programa inteiramente dedicado ao funk, o proprietário da rádio, “Seu Armando”, ampliou o tempo de programação com músicas desse gênero. Restrições legais da época, no entanto, estabeleciam um limite de 50% da programação das rádios para música estrangeira, como era o caso do funk.


“E agora? O que nós vamos tocar?”, perguntou-se Seu Armando, diante do DJ Marlboro. “A legislação não permite que eu toque muito funk na programação. Eu tenho que colocar alguma coisa nacional”, ele se queixou, antes de sugerir uma alternativa. “Faz versão brasileira das músicas funk aí, Marlboro”, ele teria dito, conforme lembra o próprio DJ (em entrevista disponível no canal do YouTube da Mídia Ninja).


Na ocasião, a sugestão não pôde ser acolhida. Por razões técnicas, econômicas e culturais, a gravação de funks brasileiros ainda não era viável. Mesmo assim, aquilo tudo deixava uma pulga atrás da orelha. Se o funk na rádio fazia sucesso e tinha boa receptividade entre o público, ao mesmo tempo em que versões brasileiras desse estilo musical eram necessárias para atender a legislação da época, porque não as produzir e comercializar?


Como um DJ envolvido até os ossos com os bailes funk da cidade, presente em vários deles todos os finais de semana, Marlboro já tinha notado o costume de se criarem letras em português para as músicas norte-americanas. Essas paródias eram estruturadas pela proximidade sonora entre palavras em português com as letras das músicas em inglês, de modo que pudessem ter ainda alguma rima e um sentido jocoso ou divertido. Assim, no canto dos bailes, “you talk too much” virava “tu taca tomate”, logo designando a música como “melô do tomate”. Dezenas de “melôs” foram criados assim. A galera gostava.


Tudo isso ia sugerindo uma demanda cultural por músicas com letras em português, mas com a estrutura rítmica e melódica do funk. Naquela época, porém, gravar uma música dependia de um arsenal tecnológico a que poucos tinham acesso. Tudo era caro e difícil.


Grandes gravadoras, por seu turno, que tinham acesso fácil aos estúdios onde os equipamentos necessários estavam disponíveis, não tinham interesse em produzir músicas para favelados. Parecia um beco sem saída.


Certo dia, porém, Hermano Vianna, o antropólogo que realizava a pesquisa de mestrado junto a bailes funks do Rio, presenteou DJ Marlboro com uma bateria eletrônica. Apesar de simples, o equipamento já lhe permitia fazer pequenas gravações e mixagens musicais, o que Marlboro aprendeu a fazer praticamente sozinho. Foi o suficiente para uma pequena revolução.


O equipamento vinha do estúdio caseiro do irmão do antropólogo. Hermano Vianna é irmão de Herbert Vianna, vocalista dos Paralamas do Sucesso. Precisamente na época em que se desenrolava aquela pioneira pesquisa antropológica, nos idos de 1986, os Paralamas do Sucesso gravaram o clipe de uma das suas músicas mais conhecidas – Alagados – no baile funk do Morro do Estácio. No vídeo clipe da música, Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone, os três Paralamas, aparecem sendo revistados por um segurança para entrarem no baile e caminhando pelo salão.


Depois disso, o resto é história. Em 1989, DJ Marlboro lançou o disco “Funk Brasil”, que pela primeira vez reuniu em álbum de duas faixas – lado A e lado B – 8 funks cantados em português, entre os quais, as lendárias “Melô do Bêbado”, “Melô do Bicho” e, acima de tudo, “Melô da Mulher Feia”. Estima-se que o disco tenha vendido cerca de 200 mil cópias, o que era uma cifra considerável.


Nos agradecimentos da dissertação de mestrado de Hermano Vianna, defendida em 1987 e pouco depois publicada em livro, o antropólogo registrou que sem o apoio e amizade de DJ Marlboro aquela pesquisa não teria sido possível. Qualquer um que já tenha se metido a fazer uma pesquisa etnográfica sabe que ele está sendo sincero. Sem a franca colaboração de informantes ou interlocutores, a cultura que se deseja conhecer torna-se simplesmente inacessível.


De outro lado, na capa do LP Funk Brasil, DJ Marlboro também registrou um agradecimento a Hermano Vianna, em gesto de reciprocidade que é não apenas justo, mas também admirável. De certo modo, o encontro entre Hermano Vianna e o DJ Marlboro criou o funk carioca, que depois abriu muitas outras portas, como atestam as trajetórias de Anita e KondZila. A pesquisa de Hermano Vianna oportunizou um encontro de mundos distintos, que ao final mudou o mundo. Toda vez que distintos mundos se encontram, coisas interessantes podem acontecer. Pena que seja ainda tão raro.

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1 comentario


anna.resende73
27 abr 2024

Sensacional esse texto Cléber!! Adorei a sua linha de raciocínio e achei as correlações fantásticas com a história do Paralamas! Parabéns!

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