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CONTRIBUIÇÃO À EDUCAÇÃO FÍSICA PARA O SÉCULO XXI

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro




O texto do companheiro Cleber Dias publicado neste portal confere enorme relevância à Educação Física, no contexto dos desafios sanitários que confrontamos no presente. Quero acrescentar argumentos complementares, referentes aos dilemas educacionais que igualmente nos afligem. Uma miríade de economistas, dentre os quais Oded Galor, atribuem à educação o papel de motor central do desenvolvimento. Todos os componentes curriculares da escola têm trabalho a fazer a este respeito, mas à Educação Física cabe tarefa intransferível.


Muitas escolas brasileiras vivem hoje uma guerra civil, decorrente do que Pierre Bourdieu denominou de incompatibilidade prática entre dois mundos – o letrado e o não letrado. Docentes, que pertencem ao primeiro, esperam encontrar no ensino fundamental e médio estudantes com as disposições necessárias ao aprendizado. Os saberes que intentam ensinar têm para professoras e professores um sabor que lhes motivou a cursar a licenciatura. A formação de seu paladar cognoscitivo, contudo, passou por etapas às quais, quase sempre, discentes da educação básica ainda não chegaram. Estes frequentemente se encontram nos estágios denominados por Piaget de pré-operatório e operatório concreto (mesmo quando suas idades não acompanham a cronologia proposta inicialmente pelo pesquisador suíço, o que ele próprio relativizou em trabalhos ulteriores). Por vezes também não completaram a formação psíquica do que Freud chamou princípio de realidade (responsável por adiar o prazer em benefício da adaptação às exigências da vida).


Eis, pois, a causa fundamental dos conflitos entre docentes e estudantes, a meu ver: um amor pelo conhecimento mais adequado ao bacharelado que à licenciatura (posto que esta última exige amor a educandas e educandos, como insistiu Paulo Freire), por um lado, faculdades cognitivas da abstração imaturas, sob o governo do princípio de prazer, por outro. Acresce uma regular incompreensão do conflito de gerações inevitável para a formação da autonomia de jovens, conforme ensinou Norbert Elias. Onde se pode encontrar a linha de fuga para este barril de pólvora, cada vez mais literal?


A Educação Física reúne atributos necessários à superação do problema diagnosticado acima. O conhecimento de que dispõe é, antes de tudo, derivado das operações concretas – sendo por isso etapa fundamental para o desenvolvimento cognitivo da inteligência abstrata. Seus conteúdos – esporte, dança, ginásticas, métodos de promoção do condicionamento físico e da saúde, brincadeiras – emergem como fenômenos culturais motivados pelo princípio de prazer (são lúdicos antes de qualquer relevância econômica de que possam se revestir). E, no entanto, sua expertise prática não é conquistada senão mediante formação da capacidade de adiar o prazer e controlar as emoções, com treinamento e disciplina. Finalmente, o esforço físico que exigem lhes aproxima do campo semântico da cultura juvenil, o que faz deles um elo entre gerações. De vez que a técnica e a tática se aperfeiçoam coletivamente, no decurso do tempo, fazendo da velhice uma fonte de conhecimentos relevantes para o sucesso das suas práticas.


Nada disso quer dizer que a Educação Física seja detentora de algum privilégio educacional. Ela coopera com os demais componentes do currículo – igualmente relevantes. Entretanto, a natureza prática da cultura corporal lhe possibilita operar em um estado antropológico mais elementar, para o que as matérias científicas, as letras, a matemática e mesmo as artes têm pouco a contribuir. Mais ainda, a Educação Física oferece as pré-condições cognitivas e emocionais de possibilidade para o trabalho teórico, em sala de aula. Porquanto a origem de seu conteúdo radica-se no lazer, adequado à passagem do princípio de prazer ao princípio de realidade.


Este atributo lúdico tem, ademais, potencial sui generis não apenas para mitigar os conflitos, como também para revitalizar a cultura da escola. É ele que reúne as melhores chances de adesão estudantil para a promoção de eventos ainda considerados extracurriculares, mas com potencial para dotar o currículo de eficiência e eficácia. A Antropologia nos ensina que a pacificação da vida social se beneficia da realização periódica de rituais internos às comunidades; eles compreendem fatores de coesão social. A tradição etnográfica sustenta que as categorias êmicas de pensamento são nucleares para a compreensão de qualquer universo social. De fato, como professoras e professores de Educação Física sabem bem, os jogos inter-salas constituem a preocupação discente central, especialmente entre estudantes que mais resistência oferecem ao trabalho das demais disciplinas. Este o ritual escolar primeiro que reclamam nossos jovens.


Sob orientação desta diretriz etnográfica, a professora de uma escola estadual do Rio de Janeiro com a qual coopero no âmbito da extensão universitária, realizou no ano de 2023, eventos esportivos e lúdicos mensais – jogos inter-salas de futsal, voleibol, basquetebol, queimado, tênis de mesa, gincana. A transformação do cotidiano escolar, revitalizado por estas celebrações periódicas, é nítida. Não apenas entre estudantes, senão também entre docentes das demais disciplinas – que, inclusive, formularam a proposta do último evento citado (sem dúvida, estimulados pelos resultados do trabalho na Educação Física). Tudo se passa como se a elevação do índice de ludicidade agregada no cotidiano escolar, por assim dizer, promovesse não apenas o bem estar estudantil, como igualmente o de professoras e professores. Culminâncias regulares, além disso, conferem sentido ao tempo odinário, oferecem-lhe direção e metas.


Argumentei em outra ocasião, que as regras, fundamentos técnicos e táticos, junto com infraestrutura material dos esportes, compreendem artefatos culturais de sofisticado grau de abstração teórica que, contudo, se objetivam em suportes concretos – na materialidade do espaço, na materialidade dos objetos, na materialidade dos corpos e nas complexas interações entre eles. Vale enfatizar ainda uma vez que os demais conhecimentos curriculares da educação básica podem encontrar na Educação Física um prodigioso laboratório para a demonstração prática de seus conceitos – se assim desejarem seus professores. Se assim desejarem, podem emular os eventos rituais da Educação Física – em festivais de música, olimpíadas científicas, concursos literários. Não em horários extras, mas no próprio período letivo; não com trabalho adicional e auto-exploração, antes com a revitalização lúdica do cotidiano. Em suma, mediante resgate do significado grego da palavra “escola” – isto é, lazer. Esta retomada pode auxiliar a escola a cumprir seu papel e recolocar as sociedades do século XXI no caminho do desenvolvimento humano. Uma formação transdisciplinar em Educação Física, depurada do intelectualismo abstrato que lhe tem caracterizado nas últimas décadas, pode contribuir para esta realização histórica imprescindível.






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