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A FAVELA COMO MÁQUINA DE ENTRETENIMENTO E INOVAÇÃO

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias


Cleber Dias


Frequentemente, políticas públicas estão em desacordo com valores e expectativas que presidem os modos de vida da população. Elaborados muitas vezes em gabinetes afastados da vida real das pessoas que tentam beneficiar, por mais bem-intencionadas que sejam, essas políticas repetidamente se mostram infrutíferas, donde resulta insatisfação e descrença generalizada diante da própria política.


Os exemplos nesse sentido são muitos: cimento onde se preferiria árvores, construções onde se preferiria espaços livres, caminhos sinuosos que prolongam os percursos onde se preferiria abreviá-los, quadras de basquete onde os jovens jogam futebol, espaços de lazer que funcionam apenas nos horários em que todos estão trabalhando.


Políticas de apoio aos micro e pequenos empresários padecem dos mesmos males. É o que mostra a extraordinária tese de doutorado da economista Isabela Nunes Pereira, defendida no Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio de Janeiro (disponível aqui). A autora estudou em profundidade 12 empreendedores da Rocinha, a famosa favela da Zona Sul do Rio de Janeiro. Todos ou quase todos atuam no que poderíamos genericamente chamar – por minha conta – de “mercados de entretenimento”. São proprietários e proprietárias de uma lan house, de uma padaria, de uma barraca de acarajé, de um estúdio fotográfico, de uma agência de notícias, de um grupo de teatro, de uma agência de turismo, de um salão de beleza ou de uma produtora de festas, bailes e shows.



Conforme os achados da pesquisa exibem de maneira até divertida, as orientações gerais das políticas de apoio a negócios de micro e pequenos empreendedores, nomeadamente àquelas agenciadas pelo Sebrae, mostram-se sistematicamente em desacordo com a lógica cotidiana desses empreendedores. O modelo geral do Sebrae é enviesado por um mesmo conjunto de critérios que se pretendem invariantes e universais, sempre voltados para a formalização dos negócios, para a administração planejada e para a expansão econômica contínua, o que não coincide, se não até contradiz, a lógica e a realidade cotidiana dos microempreendedores.


O Sebrae supõe que negócios são e devem ser estruturados para o lucro e expansão econômica, tal como prescrito pelo pensamento econômico ortodoxo. O Sebrae também recomenda selecionar funcionários capacitados, enfatizando que habilidades estão entre um dos mais importantes aspectos a serem considerados nesse processo. Baseado em estratégias de marketing para os negócios, o Sebrae recomenda ainda que a localização do empreendimento seja cuidadosamente escolhida. Finalmente, para o Sebrae, antes de começar um negócio, empreendedores devem se certificar sobre a sua viabilidade por meio de pesquisas de mercado, desenvolvendo um “plano de negócios”.


Nada mais distante do vibrante e bem-sucedido mundo comercial da Rocinha. Entre empreendedores da Rocinha, mostra a pesquisa de Isabela, predomina a ação orientada pelos recursos e habilidades disponíveis, ao invés de considerações prévias sobre demandas já existentes. Na Rocinha, empreendedores estão preocupados em obter e controlar recursos, mais do que elaborar planos que poderiam antecipar as suas ações.


Com efeito, a criação de um negócio nesse contexto tem muito pouco de planejamento sistemático. Na verdade, antes de tudo, esses negócios espelham inclinações e possibilidades pessoais de seus proprietários: o desejo de perseguir uma vocação ou a necessidade de usar o que eles sabem fazer. A questão central, portanto, é como fazer bom uso de suas capacidades e dos recursos disponíveis.


Do mesmo modo, ao invés de maximizar os lucros, eles procuram minimizar as perdas. Ao invés da expansão e do crescimento contínuo, enfatizam a sobrevivência, o prazer e a satisfação por meio do trabalho. Nesse caso, negócios não são estritamente relacionados com obtenção ou maximização de lucros. O prazer e as preferências pessoais também fazem parte desse vocabulário.


Uma proprietária de uma lan house enfatizou em entrevista que usava o dinheiro obtido naquele negócio para pagar as contas, mostrando-se bastante satisfeita com a situação. Segundo a proprietária disse à pesquisadora: “Uso o que eu ganho para pagar minhas contas. Eu não quero nada mais. Eu parei por aqui”.


Já um proprietário de um estúdio fotográfico sublinhou a sua autonomia como aspecto central de suas decisões empresariais. “Eu tenho liberdade. Eu sou livre para fazer meu próprio horário, que é minha motivação para estar aqui. Não ter chefe, não ter patrão me dizendo o que fazer e o que não fazer. Porque nós expandiríamos nosso negócio? Para ganhar mais dinheiro, para contratar mais pessoas? Não, o que eu realmente quero é fazer o que eu amo, o que eu gosto de fazer”.


Esses empreendedores veem os negócios como meios necessários para a obtenção das rendas que garantirão a satisfação deles e de seus familiares. O sucesso empresarial serve também como um meio para a garantia da autonomia frente a empregadores, além da satisfação no próprio trabalho, mais do que o lucro em si.


Dito de outro modo, a sustentação e o sucesso dos negócios servem ao prazer, isto é, são convertidos em recursos para “aproveitar a vida”. Nesses termos, o crescimento aparece como um risco desnecessário, que pode afastá-los do que realmente tem valor, que é fazer o que gostam e assegurar os recursos para uma vida boa. Por isso mesmo, preferem manter certo nível de renda obtida nesses negócios, ao invés de tentar empreender trabalho adicional para a sua expansão. Preferem estabilidade à incerteza.


A mentalidade desses empreendedores da Rocinha também é diferente dos manuais no que diz respeito aos critérios de seleção de empregados. Nesse caso, a seleção é baseada nas relações pessoais, onde os abstratos critérios das teorias de administração não serviriam aos propósitos dos negócios.


Também no que diz respeito a escolha dos locais onde funcionam esses empreendimentos, as decisões na Rocinha contrariam os manuais. Na Rocinha, tais decisões são condicionadas pelo acesso a espaços, a partir da rede de relacionamentos pessoais. Em geral, a localização para os negócios emerge como uma oportunidade, nunca como o resultado de um plano pré-estabelecido.


Tudo isso encerra uma notável sabedoria, especialmente diante dos atuais limites ecológicos. Com a impossibilidade prática de apenas manter a crença falsa no crescimento econômico ilimitado, o mundo terá muito o que aprender com esses empresários da Rocinha. Com toda a habitual generosidade que se encontra entre as classes populares, eles também estão bastante dispostos a ensinar. Basta fazer como a autora da tese: dispor-se a ouvir e aprender.

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