Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Na maior parte das tradições religiosas, há uma filosofia do deserto ou da travessia, por assim dizer. Isto é, um período de austeridade (cujo significado está longe da acepção econômica moderna) que opera como transformador dos hábitos mentais e das atitudes práticas, chamando o sujeito a novo comportamento ético. O Covid-19 é uma travessia. Também tem todas as características de uma praga divina, como aquelas que precederam a libertação do povo judeu da escravidão, no Egito antigo. Diferente do Faraó, no entanto, muitos líderes políticos de hoje têm mudado sua forma de pensar e governar, diante da providência divina. Senão vejamos.
O mundo caminhava rumo ao abismo, antes do coronavírus. Crescimento da intolerância política e religiosa, ataques ideológicos à ciência, convergências discursivas que apontavam para mais uma hegemonia neoliberal, xenofobia nas relações internacionais e mil outras fobias no campo das interações pessoais. A pandemia está pautando o debate público a respeito destas questões.
O multilateralismo, que era fustigado em várias regiões do planeta, está sendo retomado em novas bases. Na última quinta feira, mais de cinquenta países e entidades internacionais se reuniram para traçar um plano de reconstrução do mundo pós-pandemia. O coronavírus foi quem falou mais alto e assertivo: haverá doravante inversão de prioridades, a ecologia vai subordinar a economia! Certo, há quem tenha se recusado a participar, como Brasil e EUA. Trata-se, contudo, de recusa efêmera. Logo terão que dialogar. O coronavírus não reconhece preconceitos ideológicos anacrônicos. Diria até que ele veio colocá-los no seu devido lugar; isto é, no museu das sobrevivências pré-civilização.
O Brasil constitui exemplo privilegiado deste processo. O governo federal, único capaz de minimizar os efeitos devastadores da pandemia, opera, ao contrário, como seu vetor de propagação exponencial, fazendo do país candidato favorito a maior vítima mundial do Covid-19. Para agravar o quadro brasileiro, nosso debate político ficou, pelo menos na última meia década, encerrado no binarismo direita x esquerda, que deteriorou nossa inventividade para projetos de futuro. Mas é este caráter extremo da crise sanitária e econômica, entre nós, que nos coloca como maiores beneficiários da renovação cognitiva que o coronavírus institui.
Existia já, antes de tudo começar, projetos econômicos verdes, cooperativas de trabalho, associações para o desenvolvimento humano e econômico endógeno de comunidades, baseado na produção de conhecimento de alta complexidade incorporado ao trabalho, iniciativas de aproveitamento de energias renováveis (apenas a energia fotovoltaica tem potencial gerador centenas de vezes maior que a hidrelétrica, no Brasil), movimentos de todas as denominações religiosas contra a intolerância, uma juventude autodidata na linguagem da programação digital e mil outros germes de renovação social. Mais importante que tudo, cresce o percentual da sociedade que se dá conta dos equívocos eleitorais em que incorreu, há quase dois anos.
Nossa travessia pelo deserto é mais austera que a dos demais países. Somos, neste momento, o povo que colapsou as acepções teológica e econômica de “austeridade”. Isso impõe aqui a necessidade de uma reflexão mais profunda que alhures. Nossa quarentena é mais fértil e opera como incubadora de modelos de desenvolvimento plurais que se converterão, não tenho dúvidas, em nosso mais sofisticado produto de exportação.
A interrupção deste processo incubador seria, a meu ver, o aspecto mais pernicioso de um impeachment. O efeito imediato disso seria nos jogar no coração do extremismo do qual ora ensaiamos escapar. O fascismo, que desgasta-se a passos de tartaruga, mas ainda assim se desgasta, receberia o sopro nefasto do ressentimento. E Deus sabe para onde iríamos! O povo hebreu errou quarenta anos no deserto, até chegar à terra prometida. Nosso deserto deverá ser de quatro anos, com uma quarentena no meio. Interrompê-lo é pôr fim ao fluxo de criatividade social que germina, silenciosa, mas exuberante, sob um espetáculo de horrores discursivos que nos envergonha diante do mundo.
Nossas instituições foram duramente golpeadas desde 2016! Os sinais vitais estão estáveis, mas não suportariam mais um desrespeito à vontade das urnas. Freios e contrapesos têm operado para conter as insanidades mais cruéis. Há muito sofrimento, mas também muita imprudência popular! Quem insiste em ouvir os apelos do tentador do deserto, saindo às ruas, se arrisca a morrer, tornando-se mártir de uma praga profética que anuncia a maioridade civilizatória, semeada por Kant, há cerca de três séculos. Não há como retroceder; a ciência é nossa maior ferramenta de sobrevivência. Quem nega isso, entra imediatamente para o grupo de risco. O Esclarecimento do século XXI não nasce do otimismo com a razão da espécie humana, mas do imperativo decorrente dos riscos forjados em sua loucura! Mesmo assim, o sol já vai nascer. O alvorecer da grande noite de quatro anos é em 2022. Não é otimismo; é uma imposição adaptativa!
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