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A LÓGICA ESPORTIVA DA ECONOMIA

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


Sem um conjunto de regras universalmente válidas e instituições de arbitragem os esportes, como os sistemas econômicos, não podem funcionar. A equidade é obra da razão e da análise; atributos humanos que não operam bem em ato, mas sempre a priori ou a posteriori. No momento da competição – no campo de jogo ou nos mercados – as pulsões, os afetos, as emoções e os sentimentos presidem a ação. E quanto mais escassos são os recursos em disputa (ou, o que dá no mesmo, quanto maior a crença de que tais recursos são escassos) tanto mais preponderante será o sistema da luta ou da fuga, regido pela adrenalina, no processo de tomada de decisão.


Esporte e economia só podem existir, portanto, mediante rigoroso código normativo que regulamente as ações individuais e coletivas. Pressupor a existência de uma mão invisível, reguladora das competições nestas duas esferas da vida social, é propor sua deterioração absoluta até o ponto da substituição de ambos pela barbárie (que é muito diferente do que se chama comumente de “lei da selva” – já retorno a este ponto). Sem o Direito o edifício a que denominamos civilização é impossível.


Um postulado básico que se pode depreender do livro seminal de Johan Huizinga, “Homo ludens”, é que esporte e economia constituem apenas dois casos particulares da tendência humana geral a regrar suas relações sociais a partir dos princípios da equidade e da reciprocidade. A religião, o estado – em suas três esferas, legislativa, judiciária e executiva – as instituições educativa, sanitária e familiar compreendem outros tantos exemplos de coletivos humanos especializados que se dissolveriam na ausência absoluta de regras mantenedoras de algum nível de justiça, ao menos do ponto de vista êmico. Nas interações cotidianas, por exemplo, a equalização das forças discursivas é assegurada pela sociabilidade, pela modalização da fala e pela ativação do que Pierre Bourdieu denomina “temas ominibus – isto é, temas para todos, desprovidos de polêmica, do que a conversação sobre o clima oferece uma ilustração comum. Foi Georg Simmel quem teve o mérito de lançar luz sobre o papel integrador do jogo das interações cotidianas fundamentado nestas modalidades de fair play, por assim dizer. “Sociabilidade compreende a forma artística ou lúdica de associação”, sugeriu o sociólogo alemão contemporâneo de Max Weber.

Civilização e barbárie se diferenciam pela presença ou ausência de espírito esportivo, respectivamente. Há dois vetores de formação dos valores do jogo limpo: um que se orienta do meio social para o sujeito; outro que se forma na interioridade deste, concorrendo para a pacificação das formas de competir. O primeiro se objetiva no controle social da ação individual – isto é, nas regras. O segundo consiste, como nos ensinou Norbert Elias, no processo civilizador, definido pela formação do autocontrole das emoções – sem dúvida, estimulado pelas regras coletivas.


Há que se notar, entretanto, que a barbárie não pode ser confundida com a lei da selva. Esta última é, ainda, um gênero de lei, regulamentado pelos instintos biológicos das espécies que constituem a selva. O animal poderoso que estraçalha sua presa torna-se dócil tão logo alimentado e sempre que se sinta em segurança. Não há usurpação, expropriação nem genocídio na selva. E o mais inofensivo dos roedores segue, há milhões de anos, coexistindo com as grandes feras, sem risco de extinção provocada por outrem – este fenômeno artificial, inventado pela mente humana.


Barbárie é produto da ação coletiva do homo sapiens. Para praticar atos de perversidade é preciso uma mente dotada de pensamento contínuo e capacidade de prospecção com base em relações de causa e consequência. A crítica dos economistas heterodoxos ao pressuposto da mente racional é bem intencionada, mas carece de precisão. Na economia, como no esporte, a ação racional constitui um fato estruturante. A barbárie emerge quando a aplicação deficiente das regras de equidade abre espaço para que a faculdade da cognição seja escravizada pelas paixões. A desregulamentação dos mercados proposta pelos economistas ortodoxos não pode gerar o bem comum precisamente porque, entre nós, a mão invisível que regulamenta os instintos, na lei da selva, foi subjugada por nossa prodigiosa capacidade de fazer cálculos em benefício de fins egoístas. Regras civilizatórias, na economia como no esporte, operam para assegurar que a persecução desmedida dos interesses pessoais seja travada pelo freio de padrões rigorosos de bem-estar para todas as partes em competição.


Como notou Émile Durkheim, as economias sofisticadas decorrem de um processo complexo de distribuição do trabalho social – do que resulta uma estrutura muito bem descrita pelo conceito de “solidariedade orgânica”. A expressão se refere à coesão social com diversificação interna. Em outras palavras, quanto mais capaz for um coletivo humano de aproveitar as vocações pessoais de seus integrantes em um ecossistema produtivo, tanto maior será seu PIB. Ora, a manutenção de patamares elevados de coesão social supõe a distribuição equitativa do produto do trabalho coletivo, incrementado pela diversidade interna.


Precisamente nisto reside um ponto sobre o qual a ciência tática pode lançar uma luz heurística incomparável. Um técnico esportivo eficiente é aquele capaz de potencializar as vocações de cada atleta, de modo a que suas respectivas virtudes compensem suas respectivas fragilidades. Já vimos, em diversas ocasiões neste blog, que a coesão social é fator determinante da vitória em equipes esportivas. Desde 1980, Robert Axelroad tem reunido evidências por meio de simulações computacionais de que a cooperação é também a variável determinante do êxito econômico.


O economista Ladislau Dowbor, consultor das Nações Unidas para a resolução de problemas econômicos no mundo inteiro, tem insistido enfaticamente que os sistemas produtivos virtuosos são aqueles lastreados na coesão social comunitária. Independente do regime político – socialista, capitalista, social-democrata –, sugere Dowbor, o que dá certo é a associação regional e local para o incremento do próprio tecido econômico. Sem isso, os mercados externos mais robustos operam como drenos do valor produzido no território de cada comunidade específica. E isto tanto mais, quanto menos coesa ela é.


A formação e proteção de ecossistemas produtivos eficientes e equitativos depende, em suma, de duas variáveis bem demonstradas no laboratório simplificado do esporte. Em primeiro lugar, a proteção externa de regras para garantia da competição justa. Em segundo, a robustez da rede de proteção social interna. Uma condição é assegurada pela existência de instituições sólidas de arbitragem e aplicação rigorosa do regulamento; outra é conquistada mediante sofisticação da sinergia operacional do time (isto é, do entrosamento tático). Eis porque, como vimos outrora, o desenvolvimento econômico e humano pressupõe uma vida social associativa. Para tal uma etapa incontornável é a formação de sistemas educacionais estruturados no associativismo estudantil, cujo modelo disponível mais eficiente é o associativismo esportivo.



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