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A NEUROCIÊNCIA EXPLICA O ESPORTE E A RECÍPROCA É VERDADEIRA

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espirito Santo


Temos cerca de oitenta e seis bilhões de neurônios. Cada um deles é capaz de fazer mais ou menos mil conexões entre si. E realizam com prodigalidade este potencial. Vinculam-se reciprocamente em todos os pontos do corpo. Certo, especializam-se regiões no controle de funções orgânicas específicas. Mas esta modularidade neural é incrivelmente plástica e generalista. Por especializados que possam ser os trabalhos desempenhados pelas distintas regiões corticais, subcorticais e periféricas a estratégia adaptativa precípua do cérebro é o compartilhamento.


Ações motoras, registros sensoriais e equilíbrio orgânico constituem as funções do sistema nervoso periférico. Elas são presididas por processamentos corticais e subcorticais. Seria, entretanto, equivocado supor que há ordenamento unidirecional nesta dinâmica. De vez que as faculdades características do sistema nervoso central são alimentadas por inputs franqueados tanto pelos órgãos dos sentidos quanto pela interação motriz do organismo com o mundo. O sistema motor, com efeito, é dotado de outros órgãos, por assim dizer, intermediários entre as faculdades sensoriais e as condutas motoras – quais sejam, os fusos musculares e os corpúsculos tendinosos de Golgi, responsáveis pela aferição das condições de espaço, temperatura e pressão intramusculares e extramusculares, respectivamente. Cada órgão do corpo está igualmente equipado com corpúsculos neurais, a meio caminho entre vias aferentes e eferentes, com seus correspondentes sinais elétricos que seguem da periferia ao centro e do centro à periferia do organismo. Por conseguinte, em lugar de relações de subordinação – do tipo mando e obediência – os sistemas nervosos encontrados na biologia se organizam a partir da comunicação e da cooperação simétrica.


Há um tempo de maturação necessário à eficiência das funções neurais mais sofisticadas. Uma etapa fundamental a este respeito é a formação completa da bainha de mielina. Estrutura lipídica que recobre o emissor de mensagem do neurônio – denominado axônio – a mielina é um isolante que obriga o sinal elétrico a saltar sucessivamente largas distâncias do centro trófico, onde se encontra o núcleo da célula nervosa, aos terminais axônicos. Estes últimos, por seu turno, se encarregam de converter o sinal elétrico em informações químicas, liberando neurotransmissores que serão recebidos por outro neurônio a eles conectados por meio de receptores denominados dendritos. A ligação entre terminal axônico e dendrito se chama sinapse. Como vimos, as sinapses se contam aos milhares para cada uma das dezenas de bilhões de neurônios, entre os humanos. Para que esta hiperconectividade realize seu potencial, no entanto, a espécie humana gasta mais que a primeira década de vida, até que se complete a mielinização dos axônios. Se empregarmos uma metáfora digital (muito inapropriada, aliás, visto que a comunicação neural é analógica), podemos dizer que a comunicação entre sistema nervoso central e periférico se assemelha, no bebê, à internet discada, ao passo que, por volta dos doze anos de idade se obtém com frequência uma interação por banda larga.


Para nossos propósitos é heurístico observar a direção da mielinização. No neurônio ela inicia na base do centro trófico e se encerra no terminal axônico; no organismo em conjunto, ela segue do cérebro para a extremidade distal da medula espinal e da medula para as extremidades dos membros. Quando os dedos de nossas mãos atingem sua máxima sensibilidade tátil e destreza motora, é que o desenvolvimento neurofisiológico está completo, embora a plasticidade neural siga imprimindo modificações dinâmicas e ininterruptas ao cérebro e suas ramificações periféricas. E parte substancial destas alterações é disparada mediante a interação entre organismo e meio ambiente.


Nosso desejo de apropriar o mundo, que pode beirar a compulsão, responde ao empuxo conectivo que preside à sinaptogênese (formação das sinapses). Tudo se passa como se este impulso interno às fronteiras da pele se prolongasse para fora delas. É assim que literalmente incorporamos, inscrevemos no corpo e mais rigorosamente no esquema corporal modelado pelo cérebro (a que chamamos por vezes senso do eu), tudo aquilo com que nos relacionamos – sejam objetos ou sujeitos. Um tenista que realize um teste de percepção do comprimento do braço, antes de jogar, haverá de ampliá-la depois do jogo, supondo que seu membro superior está mais longo. É que a raquete foi incorporada ao modelo do próprio corpo que o tenista elabora em seu cérebro. Ipso facto os amantes confundem seus respectivos esquemas corporais, como se fossem "uma só carne”.


A distribuição de informação, a comunicação e a cooperação que se observa entre regiões corticais, subcorticais e periféricas do sistema nervoso obedece à mesma regularidade que leva organismos a se conectarem e cooperarem em um tecido social. Miguel Nicolelis – célebre neurocientista brasileiro – denomina as vastas redes de vínculos sociais de brainet, isto é, rede de cérebros. As relações sociais compreendem, segundo esta imagem, circuitos que elevam exponencialmente a conectividade dos sistemas nervosos de cada organismo. A relação conjugal, por exemplo, significa a conectividade agregada de cerca de oitenta e seis bilhões de neurônios elevada ao expoente de oitenta e seis bilhões. O número de conexões possíveis de uma brainet constituída idealmente pelos oito bilhões de humanos no planeta é, por conseguinte, inimaginável!

Mas conectar significa, dentro ou fora da pele, produzir sinergia, cooperação, trabalho articulado. Um time esportivo, uma companhia de dança, um grupo teatral, uma equipe profissional são todos unidades coletivas de sinergia social – brainets em escala reduzida. O espírito de corpo que nasce da cooperação destas corporações decorre da sincronização dos sistemas nervosos. O prazer obtido no entrosamento tático, na coreografia rítmica, no espetáculo dramatúrgico e, de maneira geral, no processo do trabalho, resulta da realização da estratégia adaptativa da biologia que consiste em distribuir a informação analogicamente. Analógico aqui quer dizer lastreado na anatomia e na fisiologia e significa informação prática, eficaz e não meramente teórica e abstrata. O conhecimento útil se objetiva nos vínculos, na maneira como sistemas vivos se acoplam estruturalmente uns nos outros – células em tecidos, tecidos em órgãos, órgãos em organismos e organismos em sociedades, conforme a descrição dos neurobiólogos Humberto Maturana e Francisco Varela.


Mas há uma condição incontornável para a concertação eficiente do trabalho corporativo (entendido aqui no sentido técnico e não depreciativo) – qual seja, a observância da lógica da reciprocidade, do circuito triádico sobre o qual a Antropologia insiste que consiste em dar, receber, retribuir. Como já vimos em outras ocasiões, a generosidade da doação e a simpatia da recepção funda um vínculo social inicialmente motivado pelo desejo de retribuição. As interações repetidas amalgamadas por estas três etapas produz empatia – literalmente a capacidade de colocar-se na pele (em grego pathos) do outro. Em linguagem neurocientífica, dir-se-á que o circuito da reciprocidade sincronizou os corpos, conectou os modelos cerebrais do eu em uma brainet de sistemas neurais homólogos.


O leitor pode se indagar então. Como explicar dois vetores simétricos e inversos de comparação entre escalas distintas da realidade? Em ocasiões anteriores tomei o esporte por equação simplificada das esferas mais complexas da vida social; isto é, como laboratório em que se pode observar regularidades sociológicas em suas dinâmicas mais elementares. Desta feita, ao contrário, proponho ver o esporte como um sistema de potencialização exponencial das redes neurais dos atletas que compõem um time. Ademais, pode ainda contestar o observador atento, se cérebros se conectam em brainets, por que razão o esporte seria dotado de qualquer privilégio heurístico frente a outros circuitos sociais – como os exemplos enumerados acima, uma companhia de dança, um grupo teatral, uma equipe profissional? A solução para este problema depende da evocação adicional de dois conceitos fundamentais – quais sejam, recursividade e modularidade.


Tomemos o primeiro deles para explicar a universalidade do circuito triádico da dádiva. O neurônio individual, como vimos, doa seu sinal elétrico por meio do axônio, de modo que outro neurônio possa recebê-lo por seus dendritos. Toda célula neural receptora é, entretanto, também emissora; de modo que recursivamente ela retribui ao sistema aquilo que dele recebeu. Recursividade significa que ações articuladas em procedimentos sistemáticos se replicam em variadas escalas. Assim entre neurônios como entre as pessoas, poderíamos formalizar a comparação entre escalas ora proposta.

Resta a indagação: porque o esporte e não a dança, o teatro ou o trabalho social em outros domínios, figura aqui como unidade privilegiada de comparação? Uma companhia de dança, um grupo de teatro, uma equipe laboral, tomados articuladamente como parte do mesmo conjunto, podem corresponder na escala sociológica à variação de especialidades das regiões corticais – por exemplo, córtex motor primário, córtex auditivo, córtex visual, córtex somestésico, córtex olfativo. De fato, a distribuição do trabalho social está para a sociologia como a especialização das regiões corticais está para a neurociência. Mas tomados isoladamente estes grupos não supõem a necessidade explícita de uma diferenciação interna; um espetáculo teatral ou uma coreografia rítmica são apresentados amiúde por uma única companhia. Ao contrário, uma competição esportiva supõe, no mínimo, duas equipes. De modo que a afirmação da especificidade de um time supõe sua oposição a outro time. A recursividade explica porque Flamengo e Botafogo jogam conforme um mesmo conjunto de princípios (denominados fundamentos e regras) e porque o córtex motor primário e o córtex somestésico executam processamento de informações segundo o mesmo regime analógico. A modularidade explica porque estes times e estas regiões corticais preservam suas identidades discretas como módulos, isto é, sem se confundirem.


No ano de 2016, os neurocientistas Jessica Cohen e Mark D’Esposito ofereceram uma solução equilibrada para a secular competição entre duas escolas da teoria neurocientífica (que, a este respeito, se comportam de modo idêntico a Flamengo e Botafogo). De um lado da polêmica se situam os localizacionistas – que postulam uma concepção especializada do cérebro, em que cada região e mesmo cada neurônio desempenharia uma função específica e intransferível. No lado oposto estão os distribucionistas – os quais sustentam que as funções cerebrais demandam a cooperação de vastas populações de neurônios, distribuídos por todo o sistema. O trabalho de Cohen e D’Esposito consistiu em demonstrar a dinâmica da modularidade cerebral. Seus dados mostram que certas funções neurais são processadas em módulos especializados – notadamente a motricidade e a sensorialidade – ao passo que outras, mais complexas, demandam o trabalho articulado de constelações neurais de maior escala, tais quais as descritas pela escola distribucionista.


Eis porque o esporte oferece novamente aqui a unidade de comparação mais apropriada. Uma companhia de dança opera de modo recursivo com a teoria distribucionista, de vez que a diferenciação entre os dançarinos é possível e provável, mas não constitui condição necessária da coreografia. Por seu turno, a imagem liberal do mercado, que o concebe como um ambiente em que coexistem exclusivamente agentes egoístas individuais, nos ofereceria o melhor exemplo sociológico em recursividade com o cérebro descrito pela escola localizacionista.


Mas a competição esportiva é o segundo melhor exemplo sociológico em recursividade com a descrição modular do cérebro elaborada por Cohen e D’Esposito. Saliente-se bem, o segundo e não o primeiro. Ao enumerar brainets de pequena escala no campo das artes e do trabalho, omiti propositadamente a melhor – a saber, a orquestra. De fato, a música clássica constitui a metáfora preferida de Nicolelis para se referir à dinâmica cerebral. E, no entanto, sabemos agora, graças ao conceito de recursividade, que a orquestra não é metáfora do cérebro ou este o é daquela; ambos constituem metonímias recíprocas, porquanto operam recursivamente, segundo a mesma lógica da distribuição de informação analógica com base no princípio da reciprocidade. A orquestra é dotada, nesse sentido, de um grau mais elevado de homologia com o cérebro que a competição esportiva. De vez que esta é binária e reúne dois módulos (isto é, dois times) em relações competitivas, enquanto aquela é multivariada e reúne múltiplos módulos (instrumentos de sopro, de cordas, de percussão) em relações cooperativas.


Somos forçados, pois, a admitir que dada a recursividade que opera em ambas, na escala neural e na social, a orquestra constituiria um laboratório de observação mais apropriado das leis gerais da reciprocidade que presidem os sistemas microscópicos e macroscópicos. Entretanto, se o cérebro e o cosmos (para tomar uma escala astronômica que ainda visitaremos) podem ser descritos mais apropriadamente por relações modulares de cooperação, os coletivos humanos ainda se comportam muito mais conforme relações segmentares de competição.


Chegamos assim a uma constatação realista e a um prognóstico otimista: os seres humanos se comportam apenas parcialmente em harmonia com as leis do cosmo, mas oferecem mostras da capacidade de fazê-lo de modo pleno no futuro. O chamado “Clube dos 13” do futebol brasileiro tem significado, de modo ora mais ora menos enfático, uma tentativa de deslizar da competição segmentar na direção da cooperação modular – do mesmo modo como os organismos multilaterais da política internacional. Dias virão em que a economia e a política tocarão concertos como as orquestras ou como as populações neuronais de nossos cérebros. Por ora, nos resta investigar os ensaios de orquestração segmentar modeladas à imagem e semelhança das equipes esportivas. A neurociência explica o esporte; a recíproca é verdadeira. Mas certas escalas são mais recíprocas que outras...

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