Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Quando, em 1918, a Gripe Espanhola iniciou seus trabalhos, encontrou no ser humano colaborador incansável e fiel. Perto de chegar a termo, a Primeira Guerra Mundial somaria em breve 17 milhões de baixas. Em poucos meses, a Grande Influenza, como a denominou o historiador John Barry, continuaria sozinha o empreendimento de devastar a vida humana.
Não que, depois de 1918, o incansável homo sapiens tenha tirado férias. Com efeito, sua empresa milenar jamais foi interrompida desde o pioneiro Caim. É que o vírus foi, naquele final de década, mais eficiente, chegando a matar entre cinquenta a cem milhões, conforme a variação do método para dimensionar os resultados de sua cooperação.
A década de 1920 seria apenas o recesso da ação com o fito de planejar nova fase e sofisticar os meios de destruição. E antes mesmo de adentrar os anos trinta, lá estava o laborioso homem empenhado no setor da aniquilação econômica. Era preciso agir, antes que Weimar e Leningrado terminassem por envolver todo o orbe em uma esfera de justiça e fraternidade! A crise de 1929 e a grande depressão da década seguinte, o fascismo, o nazismo, o stalinismo e a Segunda Guerra Mundial compreendem as obras humanas continuadoras do vírus.
Mas a humanidade recaiu em novo desvio! Por três décadas incorreu na idolatria do bem! E não fosse o advento de novos visionários passadistas (pois a contradição é a alma do negócio), cinquenta mil anos de esforços beligerantes teriam se dissipado no dreno benéfico do Estado de Bem-estar Social! Contra tal regime as almas industriosas de Milton Friedman, Ludwig von Mises, Friederich Hayek, Augusto Pinochet, Margaret Thatcher e Ronald Reagan lograram vitória!
Graças a eles, as megacorporações são hoje mais poderosas que os organismos multilaterais. Metade da humanidade segue, fitando a morte, com o mínimo indispensável a segurar o fio da vida. Países inteiros são mantidos na desorganização crônica para alimentar a opulência de umas poucas famílias. O meio ambiente é degradado em nome de uma economia erguida sobre o supérfluo e a escassez. Animais são escravizados na indústria da proteína, confinados aos milhares, nas maiores incubadoras de vírus que a história jamais testemunhou, se alimentando da soja que sobrevoa as cabeças de 800 milhões de esfomeados humanos.
Os liberalismos (assim mesmo, no plural) sempre nos levaram aos mesmos resultados. A saber, a vitória do mais forte sobre o mais fraco; a supremacia da violência sobre a sensibilidade e a razão. Na cena inicial de “2001: uma odisseia no espaço”, filme de Stanley Kubrick (1968), um bando de hominídeos descobre como brandir um osso à guisa de arma e domina um território com água, monopolizando o recurso e expulsando os demais grupos.
A sabedoria grega poderia ter solapado a barbárie, transformando por dentro o Império Romano, se os desdobramentos da guerra do Peloponeso, em 404 a.c., tivessem sido outros! Mas a brutalidade espartana sobrepujou a sensibilidade ateniense, em uma antecipação apenas recapitulada por Roma, 258 anos depois. Se internamente o Império oscilava entre a monarquia absolutista e a república, com economia escravista, seu regime de anexação de novos territórios era estritamente regido pelo laissez faire.
Pouco mais de dois milênios se passaram até que a lei do mais forte recebesse o adjetivo de liberal e, depois, neoliberal. O anacronismo não deveria ser evocado apenas quando emprestamos novos nomes a fenômenos antigos, senão também quando batizamos com novos nomes esses mesmos fenômenos! Somos a espécie da renovação embotada! Empregamos o prefixo “neo” para repaginar hábitos milenares. A história da humanidade é a história do “novo normal”!
Na série animada “Jovens titãs em ação”, que meus filhos gostam de assistir, há um mundo bizarro, onde tudo se passa ao contrário. Os personagens têm seus nomes escritos de trás para a frente. Robin é Nibor, Ciborgue é Eugrobic, Mutano é Onatum. Quando estão alegres, dizem estar tristes; quando gostam de algo, dizem odiar. Seguindo esta lógica, a política dos que hoje nos governam deveria se chamar acitílop, posto que a definem por seu contrário. Quando “atividade própria aos políticos, isto é, cidadãos da Pólis”, a monopolizam. Quando “arte de mediar conflitos de interesse pelos meios pacíficos do exercício da razão”, travam guerra irracional. Se “arte do bem comum”, engendram privilégios e desigualdades.
Há, é verdade, periodicamente um evento que parece alterar os rumos da história. Um dilúvio, uma chuva de fogo, uma dezena de pragas divinas, terremotos, maremotos, tsunâmis, guerras, crises econômicas, epidemias. Cogita-se a regeneração do planeta.
Nessa mesma esteira, chega o coronavírus. Fala-se em derrocada do neoliberalismo e da globalização dos fluxos de capital. Evoca-se a importância das políticas de Estado. Da saúde pública. Da Educação de qualidade. Da renda básica universal. Ventos parecem soprar noutra direção.
O Brasil, entrou na pandemia com 12 milhões de desempregados e mais de 25 milhões de subempregados ou desalentados. Acabava de retornar ao mapa da fome mundial. Hoje temos cinquenta milhões de assistidos pelo auxílio emergencial. Ao contrário da chantagem do discurso neoliberal, a quarentena deixou a economia de 2020 mais saudável que a de 2019, conforme pesquisa realizada pela Universidade Federal de Pernambuco . Estaremos finalmente aprendendo algo novo na história de nossa espécie?
Eis que, com cerca de quarenta e cinco mil casos novos e mais de mil óbitos diários por Covid-19, o país se prepara para reabrir as escolas! Mas, para que servem as escolas? O conhecimento curricular tem alguma aplicabilidade prática? Nos ensina viver melhor e sobreviver aos desafios? Oferece estratégias racionais para enfrentar as ameaças à vida humana? Não é a escola que ensina a tal ciência que aconselha a quarentena? Porque então esta obsessão em discordar da ciência em nome do aprendizado da ciência? A escola ensina afinal alguma coisa útil? Nossa vida escolar anterior ao coronavírus não deveria ter nos preparado para aprender a lição que ele veio oferecer?
Gestores da Educação falam de êxito escolar, sendo repetentes contumazes! Estamos longe de nos livrar do mundo bizarro! A escola oferece o mito concreto de nossa bizarrice! Proclama o conhecimento como obra humana prazerosa, enquanto produz a aversão generalizada aos estudos. Afirma que o currículo proporciona o desenvolvimento de habilidades e competências para a vida, no mesmo passo em que nega a realidade objetiva que a vida mesma apresenta.
Dever-se-ia chamar alocse!
Meus filhos ficarão em casa, assistindo “Jovens titãs em ação”!
Sodot arap salua saob!
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