Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Eleição é disputa pela opinião pública. Trata-se menos de convencer que de conquistar adesão, conforme tem nos ensinado o Núcleo de Antropologia da Política, coordenado por Mariza Peirano e Moacir Palmeira. Esta mudança de inflexão frente ao senso comum ainda não foi considerada com a seriedade necessária. Não pode, pois, haver ocasião mais apropriada para lançar luz sobre esta distinção conceitual e estratégica que um ano eleitoral em que há tanta coisa em jogo.
Convencimento supõe conflito; duas partes em disputa. A palavra deriva do latim convincĕre, que significa vencer completamente um adversário. Se há vitória, há também a derrota que lhe é consubstancial. Diferente disso, a adesão é um consentimento afetivo, um desejo de vínculo, de pertencimento. As semelhanças entre eleitores identificados com seu candidato, de um lado, e torcidas de futebol, de outro, não constituem acaso. Testemunhamos nos dois fenômenos sociológicos o mesmo fundamento emocional. Enquanto o convencimento é logrado com argumentos racionais brandidos à guisa de arma, a adesão se produz mediante presentes e dádivas que operam como buques de flores.
Lideranças políticas, especialmente as de esquerda, argumentarão que política é disputa e envolve conflitos. Não é outro o pressuposto que motiva a montanha de críticas à categoria da “cordialidade”, formulada por Sergio Buarque de Holanda. E, no entanto, é forçoso notar que esta é a definição iluminista da política; vale dizer, uma definição filosófica. A esquerda não hesita em notar, na esteira de Edward Thompson, que a abstrata concepção liberal das leis de mercado foi imposta à realidade da economia moral mediante derramamento de sangue. Ipso facto seria preciso reconhecer a inépcia do conceito teórico de política e, como corolário dele, dos argumentos racionais como armas eleitorais.
A motivação para convencer se assenta no conflito; mais que sobre o consenso (adesão meramente racional), o acento da adesão, ao contrário, recai sobre o vínculo. Enquanto acordos e desacordos compreendem operações intelectuais insuficientes para gestar elos sociológicos robustos, empatias e antipatias moldam estruturas sociais mais ou menos duradouras. É fácil perceber esta dinâmica quando se considera, por exemplo, que o esquema teórico sumariado acima é marcadamente fraco para produzir repercussões práticas. Isso se altera quando mobilizamos dados etnográficos. Uma única categoria êmica do povo brasileiro pode assim provocar o impacto frente ao qual centenas de palavras acadêmicas se reduzem a efêmera fraseologia.
Do contra. Eis como vastos segmentos de trabalhadoras e trabalhadores do país se referem aos que fazem uso verbal do chamado “pensamento crítico”. Muito antes do bolsonarismo se apropriar desta expressão nativa à guisa de estigma da esquerda, foi assim que as pessoas comuns convencionaram denominar aqueles que, por sua vez, lhes chamavam alienados. Qualquer que tenha testemunhado um ônibus cheio, estacionado ante uma ação direta de fechamento de rodovias, conhece as censuras e impropérios direcionados aos do contra, responsáveis pela interrupção do trânsito. Lula, por contundentes que possam ser seus discursos, só logrou ser presidente da república por provocar intuitivamente uma identificação popular que o distingue dos do contra. Sabe-se, com efeito, que ele relutou como operário em participar do movimento sindical, tendo em diversas ocasiões manifestado animosidade inicial aos seus dirigentes.
Marcel Mauss redigiu um pequeno artigo intitulado “A expressão obrigatória dos sentimentos”, para lançar luz sobre as injunções sociais que forçam os indivíduos a sentirem o que sentem, bem como a necessidade de expressar publicamente estas afecções íntimas. É possível parafraseá-lo para sugerir que as lideranças de esquerda são constrangidas pelos coletivos a que pertencem à “expressão obrigatória do senso crítico”. Formulam assim reiteradas dissertações professorais sobre os nexos ocultos da realidade, mesmo diante da população pouco escolarizada – por vezes, sobretudo, aí – cujas modalidades de cognição são treinadas antes por critérios pragmáticos que teóricos. O pensamento crítico tem assim um defeito intrínseco e incontornável – a saber, ele é incapaz de produzir adesão por conta da dissonância que provoca entre atitudes mentais pragmáticas e prolixas. Mais que isso, ele engendra ressentimento; pressupondo que a realidade se encontra oculta na penumbra, supõe de modo implícito que as pessoas são vítimas de uma ilusão. Estas, que não são bobas, não apenas recusam sua adesão, mas produzem ativamente uma cisão.
Onde se desejaria produzir vínculo, nascem duas categorias acusatórias: os alienados e os do contra. Estas formas nativas de classificação obedecem a uma tendência humana à reunião em grupos fortificados que se opõem aos demais – algo dramatizado nas torcidas esportivas. Ao que parece, este é um empuxo bastante primitivo, documentado de modo quase universal pela a historiografia e pela etnografia. Constituindo um dado estrutural, as pessoas têm dele percepção intuitiva. E na vida social cotidiana, se esforçam por minimizar as animosidades que podem decorrer do encontro com grupos rivais, mediante práticas de generosidade e cortesia. Algo que Mauss definiu como a lógica da dádiva e que a Antropologia formalizou sob o princípio da reciprocidade. A “cordialidade” apontada por Sergio Burque de Holanda como a característica distintiva do povo brasileiro, nada mais é que um caso particular da reciprocidade universal que visa minimizar os conflitos entre segmentos sociais rivais, também esquematizados antropologicamente sob o princípio da segmentaridade – algo que se pode simplificar como a tendência à formação de torcidas. Ora, a expressão obrigatória do senso crítico ignora soberanamente as normas de cortesia social e modalização da fala que minimizam os conflitos e, mais que isso, se esforça por lembrar a todo o tempo que eles existem. Nesse contexto, qualquer líder minimamente carismático que se outorgue o título de defensor dos coletivos tradicionais – a família e a comunidade religiosa, por exemplo – logrará facilmente amplas adesões. Mesmo a belicosidade de um Bolsonaro não será problema se ela estiver a serviço dos valores cultivados pelo povo. A revolução destes valores, ao contrário, provoca imediatamente a cisão.
Vale explorar etnograficamente estas noções. Um documento recentemente publicado pela Igreja Universal do Reino de Deus pode servir como caso exemplar da maneira como a organização social das denominações religiosas aproveita o empuxo humano à reunião em torcidas. Intitulado “Cinco motivos que mostram que é impossível ser cristão e ser de esquerda”, o texto contrapõe os dois grandes segmentos sociais mencionados no título, propondo então a impossibilidade absoluta de interseção entre eles, à maneira do pertencimento a uma determinada torcida esportiva, saliente-se. Vejamos as justificativas evocadas (cf. 5 motivos que mostram que é impossível ser cristão e ser de esquerda - Universal.org - Portal Oficial da Igreja Universal do Reino de Deus - Universal.org – Portal Oficial da Igreja Universal do Reino de Deus, para o documento na íntegra).
Os “esquerdistas”, sugere o primeiro argumento, “destroem a rede de apoio familiar” mediante proposições sobre a diversidade das formas de constituição da família e incentivo ao uso de drogas “para salvar o povo usando assistencialismo manipulador”. À parte a simplificação do debate sobre descriminalização das drogas, saúde pública e extermínio à população pobre e negra, bem como sobre sexualidade, liberdades e direitos afetivos, que a formulação perpetra, interessa aos propósitos presentes o último período entre aspas. A ideia de assistencialismo manipulador encontra-se também na base de outra fala do líder da mesma denominação, Edir Macedo: “a teologia da libertação optou pelos pobres, mas os pobres optaram pela teologia da prosperidade”. Os pressupostos de fundo das duas enunciações dialogam diretamente com os valores populares associados à economia popular informal e à preferência dos brasileiros pelo trabalho por conta própria em detrimento das relações formais, protegidas pela legislação trabalhista. A igreja de Edir Macedo se alinha assim a estes aspectos culturais marcantes entre trabalhadoras e trabalhadores do país inteiro, caracterizando a esquerda como representante exclusiva do trabalho assalariado e dos direitos trabalhistas, classificados como assistencialismo manipulador. De um lado, o patrão opressor, responsável pelo que Lúcio Kowarick define como uma aversão às relações salariais, de outro, os agentes “esquerdistas” do Estado, com seus programas assistenciais que visam inviabilizar a ascensão dos pobres por meio do empreendedorismo comunitário. A estrutura do argumento é claramente a de uma oposição segmentar.
O segundo motivo que inviabilizaria a opção política do cristão pela esquerda seria a correlação histórica entre o marxismo e a ditadura. Sabe-se, com efeito, que as experiências históricas autointituladas socialistas foram preponderantemente ditatoriais. Com exceção da pequena escala em que se encerra a experiência cubana e da economia chinesa, milenarmente lastreada pelo que Marx denominou “modo de produção asiático” e pelo espírito de colmeia que o confucionismo engendra, as demais ocorrências ditas socialistas foram efetivamente autoritárias e isso se deve, como veremos, a um paradoxo do qual a noção marxiana de luta de classes não consegue escapar. Os líderes da Igreja Universal do Reino de Deus, tantas vezes ridicularizados como ignorantes pelas elites intelectuais do país, têm sabido argutamente se valer de uma contradição incontornável do discurso preponderante na esquerda.
O terceiro ponto inventariado pelo panfleto neopentecostal se refere ao ateísmo suposto pelo materialismo histórico. Uma vez mais, os bispos da Universal mobilizam afetos caros à maior parte da população brasileira, largamente religiosa. Em todos os casos o texto se preocupa em produzir a distinção expressa no título, por meio da conversão das características da esquerda, de um lado, e dos cristãos, de outro, em sinais diacríticos antagônicos – homólogos a emblemas e bandeiras.
O penúltimo argumento é dotado de natureza profundamente simbólica, explorando a multimilenar e transcultural valorização do lado direito em prejuízo do esquerdo. O texto cita então algumas passagens bíblicas que seguem esta tendência da maior parte dos povos a valorizar o lado direito. Estamos aqui no coração do atributo psíquico humano que o leva a adotar um lado social, em detrimento de outro. Um dos artigos fundadores da reflexão sobre os aspectos culturais da lateralidade corporal foi redigido por Robert Hertz, sob o título “A preeminência da mão direita” e com o subtítulo ainda mais emblemático para o tema em foco: “um estudo sobre a polaridade religiosa”. A questão ontológica que a reflexão permite levantar – a saber, dado o caráter transcultural da preeminência do lado direito sobre o esquerdo do corpo humano, pode-se concluir se tratar de um atributo inscrito na biologia, ou seria uma ênfase cultural datada dos primórdios da espécie humana a responsável pela especialização predominante da mão direita? – é aqui menos importante que o uso religioso do fato, notadamente entre as chamadas religiões do livro (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo), para produzir distinções e polarizações.
Em último lugar, e mais importante para o argumento esboçado neste artigo, a quinta justificativa atribui à esquerda o protagonismo pela produção dos conflitos sociais. Evocando a imagem neotestamentária da igreja como corpo de Cristo, o texto exalta a noção de unidade, argumentando que a esquerda “destaca a diferença para incentivar a briga entre as pessoas”. De fato, o documento religioso entra aqui em uma contradição que tem se revelado estrutural na política planetária. Trata-se de uma antinomia simétrica e inversa entre esquerda e direita. A última, defendendo os interesses particulares do capital emprega a cordialidade nas interações eleitorais com o trabalho – acionando argutamente a lógica afetiva da reciprocidade –; a primeira, proclamando defender os interesses de trabalhadoras e trabalhadores, amiúde destes se afasta revestindo-se da frieza racionalista e envergando a hexis da prepotência intelectual. E, sobre o paradigma do conflito estruturado pela noção de “luta de classes”, o documento da Universal conclui sintomaticamente: “Quem instiga o ódio é o diabo”. Tal qual no caso das torcidas esportivas, é a manutenção permanente de um inimigo externo o principal fator de coesão social do próprio grupo. Aqui o inimigo é a esquerda, equalizada com o diabo.
Ora, uma característica interessante do diabo é que ele pode se incorporar em qualquer um que engendre cisões com a igreja – a qual se concebe como o exército de Deus, não apenas protegida contra o diabo, senão também em luta permanente para encerrar seu reino. E, no entanto, as religiões neopentecostais compreendem apenas um caso particular (levado ao paroxismo) desta dinâmica universal que faz da reciprocidade um fertilizante da adesão e da segmentaridade um veneno dia-bólico. As previsões que atribuem a Lula uma vitória no primeiro turno bem poderiam se tornar proféticas se metade da esquerda tivesse metade da cordialidade do seu candidato.
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