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ANELO POR FAIR PLAY

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

Cleber Dias


Quando em 2013, Angus Deaton, o ganhador do Nobel em ciências econômicas, publicou seu prestigiado A Grande Saída, outro parecia ser o povo brasileiro. Logo na introdução, o livro trazia um gráfico cotejando a percepção de felicidade entre diversos países. Os resultados evidenciavam que felicidade e desenvolvimento econômico não necessariamente se correlacionavam. Com uma renda de cerca de dez mil dólares, o Brasil figurava entre os países com mais altos graus de felicidade do mundo. Entre os países com PIB entre trinta e quarenta mil dólares – portanto o triplo ou quádruplo da renda do Brasil – apenas Dinamarca e Nova Zelândia sentiam-se mais felizes. Dentre os mais ricos que o Brasil, Reino Unido empatava conosco, enquanto Alemanha, Japão, Taiwan e Hong Kong estavam abaixo de nós. Desde então, o tamanho de nossa economia pouco se alterou. No entanto, repetiríamos hoje a performance com relação à felicidade?


Precisamente em 2013 o Brasil foi palco dos massivos protestos que ficaram conhecidos como as Jornadas de Junho. Motivadas no início por reivindicações pelo direito à cidade e à mobilidade urbana, aquelas mobilizações ofereceram oportunidade para expressão do descontentamento político das “classes médias”. Há quem interprete o fenômeno como um processo de nacionalização de reinvindicações direcionadas à esfera da política municipal, desencadeado por obra da mídia. Para Jessé de Souza, por exemplo, a televisão, liderada pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, teria procedido à alquimia de converter os problemas de mobilidade urbana, sob responsabilidade das prefeituras, em “Fora Dilma”.

Todavia, sabemos que as condições de felicidade de uma mensagem jornalística não dependem exclusivamente da clareza e do carisma do emissor, senão também das disposições dos receptores. A grande mídia é a força política que mais sofreu derrotas nas eleições presidenciais desde a redemocratização: “ganhou” três, com Collor e Fernando Henrique, mas “perdeu” cinco, com Lula, Dilma e Bolsonaro.


Este placar é apenas um exemplo de como a propaganda televisa malogra sempre que as condições de recepção da sociedade civil lhes são desfavoráveis. É prudente, portanto, não desprezar a inteligência da “classe média” ou dos trabalhadores. A mídia quis nacionalizar as questões em pauta nas Jornadas de Junho e a “classe média” estava com ela. As razões são conhecidas: pequena, mas importante distribuição de renda entre os pobres, acrescida de uma ampliação dos lucros da elite econômica, o que juntos, resultou em um esmagamento da qualidade de vida da “classe média” – no fenômeno conhecido, muito literalmente, como “middle-class squeeze”.


A incorporação da cultura material da “classe média” pelos trabalhadores, do que o uso do automóvel e a frequência aos aeroportos constituem uma das expressões mais evidentes, logo se tornou uma pressão demográfica sobre as condições de mobilidade e de acessibilidade à cidade, até então um privilégio dos estratos superiores. Onde antes se podia imitar pilotos de Fórmula-1, passou-se a cultivar o tédio e a irritação nos intermináveis engarrafamentos. Ermínia Maricato formulou a explicação ainda insuperável das Jornadas de Junho: “É a questão urbana, estúpido!”. A imobilidade, até então disponível apenas para os trabalhadores, havia sido finalmente democratizada. Com isso, o clima esquentou.


Quando a rivalidade entre duas equipes de futebol é intensa, o confronto esportivo deteriora a técnica, a tática e a estética do jogo, além de instaurar práticas de exceção à aplicação das regras. Se os atletas não conseguem controlar as emoções e deslizam da competição esportiva para o confronto físico violento, pode-se esperar que a torcida (por definição, isenta da jurisdição das regras vigentes em campo) deflagre guerra, tomando adversários por inimigos.


Embora o fenômeno possa ter raízes históricas mais profundas, as narrativas convergentes da “classe média” e da mídia durante a eleição presidencial de 2014, converteram PT e PSDB em times de futebol e seus eleitores em torcidas arrebatadas. Os perdedores deflagraram guerra e surrupiaram a taça. Quatro anos depois, a serpente sairia do ovo, incontrolável. Agora o esporte desaparecera; não havia regras, fair-play ou quaisquer outras barreiras civilizatórias. Técnica, tática e estética deterioraram-se. Absolutamente nada pode escapar do círculo infernal da segmentação direita x esquerda: protocolos diplomáticos, crenças religiosas, tratados internacionais, consensos científicos, orientações epidemiológicas. “Ultrapolítica” tem sido um dos conceitos forjados para nomear o fenômeno, onde tudo é enquadrado por clivagens ideológicas, a ponto de esvaziar o conteúdo político das legítimas divergências e disputas políticas desenroladas no apropriado campo da política.


A espécie humana condensa na estrutura de seu temperamento as duas forças básicas que estruturam o universo: atração e repulsão. Há muitas formas de nominar isso. Empédocles chamou de amor e conflito. Os antropólogos chamam de reciprocidade e segmentaridade. Na política, na economia e no esporte, fala-se de cooperação e competição. Estes dois polos constituem, em verdade, um contínuo e uma unidade complementar e contraditória.

Rio de Janeiro rivaliza com São Paulo, mas ambos possuem relações econômicas, políticas, esportivas, amorosas e artísticas. Além disso, na rivalidade com os argentinos, paulistas e cariocas suspendem ao menos temporariamente suas oposições. Argentina e Brasil se unem (ou deveriam) frente à América do Norte. Latinoamérica, África, Índia e China, deveriam estar juntas frente ao Norte. Norte e Sul deveriam se unir frente a um vírus que ameaça a espécie humana.


Sempre que se amplia ou se reduz a escala de observação, a relação entre competição e cooperação se altera. Daí que as rivalidades entre times, partidos, corporações econômicas ou campos políticos deva se exercer dentro dos limites da civilidade. O rival de hoje pode ser o aliado de amanhã, a depender apenas das motivações e interesses que mobilizem as disputas. Isto talvez seja especialmente verdadeiro quando o desequilíbrio ecológico suscita novos e desconhecidos inimigos.


Sem a devida temperança – ou poderíamos dizer fair play – deterioram-se a técnica, a tática e a estética, da política, da economia, da ciência, da cultura, das amizades, das inimizades e de todo o resto. A debacle econômica e a mortandade de uma pandemia, por dramáticas que sejam, estão longe de compreender os piores desdobramentos do extremismo. O que estamos perdendo são as condições subjetivas daquela felicidade registrada por Deaton.




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