Três ou quatro considerações sobre as objeções de Luciano Pereira da Silva
Cleber Dias
Salve irmão, respondo ao seu artigo para tentar retribuir sua generosidade em dedicar-se ao assunto com tanta seriedade e também pela própria natureza dos seus argumentos, bastante estimulantes, para já não falar da minha pré-disposição permanente ao bom debate, como você bem sabe. Tomo a liberdade de respondê-lo através de uma carta aberta por acreditar que o expediente está mais de acordo com o espírito que anima as suas objeções, bem como este blog, que é o de tentar estimular o debate público e disseminar certas ideias, especialmente aquelas que desafiam o senso comum. Não é minha intenção ter a última palavra sobre o assunto. A rigor, não há opiniões certas e erradas nesse caso. Há apenas opiniões.
Afora pormenores como a associação das listas tríplices à ditadura militar, o que nada diz a respeito da adequação ou inadequação desse mecanismo, do mesmo modo que as 15 universidades construídas nesse mesmo contexto não se tornam nem mais nem menos imprescindíveis por conta disso, julgo que três elementos mais relevantes resumem os fundamentos da nossa divergência. O primeiro é o papel e o lugar político a ser desempenhado por duas distintas formas de governança democrática: a participativa, de um lado, e a representativa, de outro. Você parece preferir a primeira, enquanto eu seguramente prefiro a segunda.
A governança participativa, embora de grande apelo simbólico, é de difícil operacionalização para o encaminhamento de soluções complexas, dentro de cadeias institucionais extensas. Ao contrário, trata-se de algo mais apropriado para a gestão de problemas simples de pequenos grupos, onde o consenso pode-se alcançar ou se impor de modo mais fácil. Imagine tentar resolver o problema do aquecimento global por mecanismos de participação direta.
Situações recentes que incendiaram a imaginação política internacional por empregarem a participação direta e horizontal, sem o apelo a intermediação de representantes, geralmente envolveram apenas uma pequena parte dos que estavam envolvidos em tais ações, duraram pouco tempo e ainda assim funcionaram precariamente. Foi assim no movimento Occupy e em vários outros do mesmo tipo.
Logo, porém, as pessoas se cansam daquelas inúmeras e intermináveis reuniões, dedicadas a regular coletivamente até os assuntos mais prosaicos do cotidiano, que afinal, naqueles contextos, dependem de participação direta. Além disso, cedo ou tarde, as pessoas precisam retomar os seus afazeres. Alguém sempre precisa limpar a casa, preparar a comida e cuidar das crianças. O simples fato dos mecanismos de representação serem amplamente utilizados, em vários lugares e há tanto tempo, já nos diz algo a respeito da eficiência desse modelo.
Outro ponto importante da nossa divergência diz respeito ao lugar do consenso para a organização política de uma comunidade. Se o consenso fosse mesmo o elemento que legitima o exercício do poder político, conforme você afirma, estaríamos diante da sua impossibilidade prática, o que torna o seu argumento um sofismo.
O consenso em sociedades tão plurais e complexas quanto a nossa é na maioria das vezes simplesmente impossível, como já o demonstra o nosso pequeno debate. No nosso mundo, quase não há consensos, mas apenas maiorias e minorias, que podem, ainda assim, ser voláteis. Você, entretanto, parece alimentar uma falsa expectativa de que há ou haverá um dia um horizonte homogêneo de desejos políticos. Muito reveladoramente, seu texto fala dos desejos de uma coletividade, no singular, como se fosse possível superar os conflitos que atravessam e dividem uma sociedade. Diferentes classes, raças e gêneros não formam uma única coletividade, mas várias. O que essas e várias outras coletividades, no plural, almejam, também não é homogêneo e não se reduz a um único feixe de ambições.
Paradoxalmente, o modo de raciocinar subjacente à noção de uma única coletividade orientada pelo consenso guarda afinidades com o que tem sido chamado de bolsonarismo, do que você e eu somos igualmente críticos, no que consistiria outro sofismo dos seus argumentos. Foi Weintraub quem disse um dia odiar a noção de povos indígenas. Weintraub não admite haver espaços no Brasil para mais de um povo. Para Weintraub, todos fazemos parte de uma única e mesma coletividade: o povo brasileiro, no singular. Daí resulta a violência autoritária, pois as vozes dissonantes dessa coletividade falsamente imaginada como unificada, harmônica e consensual devem se calar, se curvar ou serem eliminadas – pela exclusão ou pelo extermínio. Não por acaso, militantes da direita, tão identificados com o bolsonarismo, gostam de bradar que não têm partido e que o partido deles é o Brasil, sem se darem conta de que o país com que sonham e as causas que defendem não são capazes de traduzir a diversidade de sonhos e causas que animam distintos grupos país afora. O Brasil, como todos os países, é diverso e plural, seja nas cores, nos modos de vida ou nos ideais políticos.
Com efeito, o sonho doentio de todo tirano é eliminar a divergência e estabelecer o consenso, se não pelo convencimento, que seja pela força. Para um tirano, o consenso é tomado como condição de possibilidade para uma vida harmoniosa, donde conflitos de opiniões, pluralidade de valores, dissensos nas ideias e divergências de interesses são sempre tomados como problemas a serem superados, ou melhor, ruídos a serem eliminados. Por tudo isso, não apenas descarto o consenso como imperativo de uma vida democrática, como acho mesmo que é o dissenso o seu pilar fundamental. A combinação de mecanismos majoritários e proporcionais para eleição de representantes é outra engenhosa acomodação institucional, talvez insuperável, de tentar atender o que almejam certas maiorias, sem excluir ou sufocar o que almejam as minorias. É lindo!
Um terceiro componente que acredito explicar nossa divergência é o sentido que se atribui a representação. As decisões de um representante, diferente do que você presume, não necessariamente precisam estar em “sintonia com o pensamento da população”, tomando emprestado um fragmento do seu texto. Dentre outras razões, não há um único pensamento consensual a ser representado, mesmo se tomarmos apenas eleitores de um mesmo representante. Novamente, você enxerga homogeneidade e consenso, onde há apenas heterogeneidade e dissenso.
Alguns talvez desejem menos impostos. Outros, contudo, talvez desejem mais e melhores serviços públicos, constituindo demandas claramente conflitantes. Qual delas o representante deveria tentar atender? No limite, a resposta a essa pergunta cabe apenas ao representante, que deve, inclusive, assumir as consequências de suas escolhas diante daqueles a quem representa. Para o representante político, em particular, uma das piores consequências a que pode estar submetido talvez seja a perda do mandato nas próximas eleições, o que significa a privação (temporária pelo menos) do exercício do poder político.
Além disso, se é verdade que as decisões de um político eleito ou de um agente público nomeado para um cargo de confiança podem não estar em “sintonia com o pensamento da população”, conforme você bem disse e com o que concordo, restaria por explicar, todavia, porque tais limitações não pesariam sobre as decisões tomadas por um servidor de carreira. Servidores, tanto quanto políticos ou agentes em cargos de confiança, não são oniscientes a respeito das aspirações políticas populares, de modo que as suas capacidades de estar em sintonia com os pensamentos da população, não são, por princípio, melhores ou mais apuradas. Políticos ou agentes em cargos de confiança, porém, podem periodicamente se verem privados do acesso ao poder público. Os servidores não.
Servidores têm e têm que ter estabilidade, não pedem votos, não fazem promessas, não se submetem a sufrágios e não assumem compromissos com nenhum grupo político em particular. Um dos principais compromissos dos servidores é com a obediência diante das legislações que regulam as suas funções. A legalidade, não por acaso, é um dos princípios fundamentais que presidem o trabalho no setor público. A lista tríplice, a propósito, para o bem da nossa democracia, tem sido rigorosamente respeitada, tal como estabelece a lei que regula o assunto e não conforme os desejos políticos de alguns setores. Em regimes democráticos, as leis têm que ser obedecidas, gostemos delas ou não. É por isso, afinal, que a democracia é o Estado de Direito.
Leis, é claro, não são escritas em pedra e podem ser alteradas. Até esse dia chegar, todavia, o funcionamento de instituições públicas opera como o jogo do bicho: vale o que está escrito. Nesse sentido, o fato de discordamos das opiniões deste ou daquele reitor, não tira a sua legitimidade. Por isso mesmo não há que se falar em “intervenção” - ao menos não em quanto as leis estiverem sendo observadas.
Já a fiscalização de órgãos como o Ministério Público ou a Advocacia Geral da União, não pode, de forma alguma, ser confundida com “controle político”. Promotores públicos ou auditores fiscais são servidores do Estado, não políticos. Esses agentes não fazem e não podem fazer política no exercício de suas funções. Eles apenas fiscalizam quem faz. Nós todos lembramos dos perniciosos efeitos de quando um servidor do Poder Judiciário decidiu usar as prerrogativas das suas funções públicas para fazer política. Foi uma tragédia. A natureza do controle exercido por esses agentes, portanto, é de outra ordem.
Por outro lado, sindicatos ou conselhos profissionais, que não têm gerência alguma sobre a coisa pública, são tão somente grupos de pressão organizados, que atuam de acordo com interesses corporativos muito específicos, como é próprio à natureza de instituições desse tipo. Interesses difusos, no entanto, que abarcam o conjunto mais amplo e difuso da sociedade, como o nome já indica, não contam com a salvaguarda de instituições tão aguerridas. Não existe, nem nunca existirá, uma “Associação dos Pobres e Analfabetos Inteiramente Excluídos de Quaisquer Possibilidades de Frequentar as Universidades Públicas”, tampouco uma “Associação dos 70% de Estudantes que Pagam para Frequentar Instituições de Ensino Superior de Baixa Qualidade”. Aos interesses difusos, só resta a esperança de encontrar alguma representatividade nos representantes políticos. Reside aí o incontornável primado da política.
Por último, já extrapolando os assuntos fundamentais e abusando da sua paciência, um pequeno parêntese sobre os Sofistas, grafado com letra maiúscula, apenas para enfatizar a grandeza dessa corrente de pensamento. Embora você tenha esquecido de apontar quais exatamente teriam sido as inconsistências lógicas dos meus argumentos, fiquei envaidecido com a analogia com Protágoras, ainda que sutil, remota e indireta. Imaginei-me já caminhando pela Acrópoles vestindo uma túnica branca. Embora eu não seja um filósofo e tampouco goze de prestígio entre os meus pares, de fato, eu e todos os professores universitários guardamos alguns paralelos com os Sofistas. Em diferentes medidas, nos envolvemos no debate de questões públicas e ainda recebemos pagamentos em dinheiro em troca da oferta de conhecimentos, no que parece bastante justo, eu acho. Faltou apenas dizer que os Sofistas também eram impetuosos defensores do uso da razão, que parte significativa do legado da filosofia ocidental deve-se a eles e que o entendimento de seus argumentos como logicamente inconsistentes decorre unicamente da interpretação vinculada por dois dos seus principais adversários e opositores, a quem devemos os únicos fragmentos de textos Sofistas que nos chegaram: Platão e Aristóteles. Nem a filosofia da Grécia Antiga, onde se inventou a democracia, era consensual, veja só.
Salve Luciano, antes de tudo, devo seguir te agradecendo pelas contribuições, que acrescentam e aprimoram a discussão, bem como os meus próprios pontos de vista. O debate todo é fantástico, talvez menos pela questão da eleição dos reitores em si, mas por tudo que fundamenta as nossas opiniões.
Seu entendimento de que consenso, na ciência política, significa debater e ouvir a população, parece-me parcial, pois embora a palavra signifique também a opinião da maioria, conforme você destacou, significa também "unanimidade". Mais importante, você impõe um significado unívoco ao entendimento do que seria consenso, como se a ciência política tivesse um acordo a esse respeito, com o que eu discordaria inteiramente. Para fazer um trocadilho, nas ciências políticas, como na linguage…
Acompanhei com deleite o debate entre os professores Cleber Dias, meu parceiro neste blog, e seu colega da UFMG, Luciano Pereira da Silva – a quem não conheço pessoalmente e, doravante, admiro! Não vejo, em nenhum dos lados, grandes equívocos (a não ser o de não perceber o caráter complementar e não antagônico dos argumentos de ambos). A relação entre representação e participação não é, a meu ver, nem de oposição, nem de distanciamento discreto, mas de continuidade. Cleber está certíssimo ao argumentar que, se todos os duzentos milhões de brasileiros se converterem em gestores – considerando que milagrosamente quisessem isso – não haveria mais trabalho a gerir. Por outro lado, há gradações entre os que não desejam atuar diretamente…
Caro Cléber,
o seu texto, muito bem escrito como sempre, possui três erros conceituais básicos.
1. Consenso não significa necessariamente homogeneidade. Pode significar “vontade da maioria”. Na ciência política, lugar de onde falo, a construção do consenso significa debater/ouvir a população para que, na medida do possível, as políticas públicas alcancem o maior número de pessoas e contemple a diversidade. Por isso, o consenso fundamenta o exercício do poder político.
2. Gestão participativa não é o oposto de gestão representativa. Pensar dessa forma é um equívoco comum. As instância de participação (plebiscitos, conselhos temáticos, ouvidorias, orçamento participativo, audiências públicas, dentre outros) norteiam as ações dos representantes eleitos e, por isso, fortalecem suas ações e ajudam a consolidar a democracia. Sobr…