CIÊNCIA, RELIGIÃO E A QUESTÃO QUE HADDAD NÃO RESPONDEU
- Wecisley Ribeiro
- 11 de jul. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 12 de jul. de 2020
Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
O objetivo deste texto é responder à questão para a qual Fernando Haddad não conseguiu oferecer resposta convincente, no programa Roda Viva do dia 06/07/2020, segunda feira última. “Porque o PT não consegue dialogar com os segmentos conservadores, entre eleitores de baixa renda, no Brasil?” Vale dizer de saída que Haddad me parece ter dividido com Ciro Gomes a condição de presidenciável melhor preparado tecnicamente, nas eleições de 2018. E que, por razões de cálculo político, acertado ou não, votei nele, nos dois turnos. Se em 2022 tivéssemos os mesmos treze candidatos, provavelmente meu voto se repetiria. Feita a ressalva, vou direito ao ponto.
Entre os defensores da democracia virou lugar comum a crítica fácil ao neopentecostalismo. Segundo denunciam, os pastores manipulam os fiéis, sugestionando-os a votarem em políticos conservadores. Supõem assim que o povo vota contra os próprios interesses. Julgam conhecer melhor que os eleitores neopentecostais o que eles necessitam.
Mas quando a crítica opera com lugares comuns já não é mais crítica. Elaborar novo diagnóstico social é condição indispensável para sairmos do buraco em que ora nos encontramos. Os pastores têm alguma coisa que não temos – a saber, um canal de comunicação com os pobres e oprimidos. Este canal se materializa no objeto que a intelectualidade mais despreza – ela mesma, a Bíblia.
A esquerda brasileira, em sua maioria, deve começar sua reflexão assistindo “O livro de Eli”, filme protagonizado por Denzel Washington e dirigido pelos Irmãos Hughes. Carnegie, antagonista interpretado por Gary Oldman, mobiliza sua milícia privada para roubar o último exemplar do livro sagrado cristão, em um mundo pós-apocalíptico que queimou todas as demais cópias, dado o poder de convencimento sui generis contido em suas páginas e seu emprego para dominação da humanidade. Em dado momento, depois de o ungido portador do livro, Eli (Washington), matar sozinho uma dezena de milicianos, pergunta um dos capangas de Carnegie: “porque tanto sacrifício por um simples livro?” O chefe, exasperado, explode com olhos fulminantes e voz colérica: “não é um livro, seu idiota! É uma arma apontada diretamente para os corações e mentes dos fracos e desesperados. Vai nos dar controle sobre eles. Pessoas virão de todo lugar e farão exatamente o que eu disser, se as palavras forem do livro!”
A Bíblia é particularmente suscetível à distorção do espírito do texto por sua letra, dada a distância temporal e, principalmente, as diferenças culturais pronunciadas que nos separam do seu contexto de produção. O anacronismo consiste em interpretar uma obra com critérios semânticos engendrados em tempos distintos daqueles nos quais ela foi redigida. Os livros da Bíblia não oferecem descrições cronológicas literais de eventos históricos, mas alegorias e contos edificantes, com metáforas, metonímias e sinédoques elaboradas com os dados imediatos da observação da natureza e da vida social da época. Trata-se de padrões imagéticos que operam com referências comunicacionais distintas. Nossos modos de representar textualmente o mundo operam com pretensões de realismo e objetividade que não estavam em jogo entre os profetas e discípulos de Jesus.
É próprio da linguagem científica a expressão textual caracterizada pelo que a antropóloga Dorothy Lee denominou “codificação linear” da realidade. Ou seja, a apresentação das ideias referenciada por um progresso em linha da exposição. Esta linha pode ser espacial (quando há uma descrição topológica, que percorre minuciosamente os detalhes do mundo material) ou temporal (quando a narrativa é cronológica). A Bíblia, diferentemente, opera com um gênero de codificação não linear da realidade. Ela apresenta padrões imagéticos carregados de sentido ético, que não obedecem aos nossos critérios ocidentais e a acadêmicos de linearidade, causalidade e sucessão histórica ou continuidade geográfica.
A combinação aleatória entre fenômenos naturais e sociais para expressar uma moral constitui uma característica central das parábolas bíblicas. Lévi-Strauss chamou isso de “ciência do concreto”. Nisto reside a potência deste livro; ele emprega no ato comunicativo as noções mais acessíveis ao menos letrado dos interlocutores.
Aqui também se encontra o cerne da oposição entre neopentecostalismo e ciência (ou pensamento crítico). Tal conflito não reside apenas na interpretação literal da Bíblia por uma parte dos pastores evangélicos. Os intelectuais que pensam nesses termos reduzem o problema e se eximem da responsabilidade. A outra face do literalismo neopentecostal é o abstracionismo da universidade.
O que se denomina formalismo acadêmico refere-se à tendência a elaborar modelos teóricos abstratos, desconectados dos fatos concretos da vida. No Brasil, ele assume feições de uma pseudo-epistemologia gestada no bojo do escravismo. O formalismo tupiniquim foi muito bem caracterizado pelos estudiosos da formação nacional. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, fala da superficialidade de nossa formação livresca.
Os filhos dos coronéis seguiam para Coimbra no intento de incorporar marcas de distinção e superioridade intelectual. Buscavam o título, mas não a substância da formação. Aqui reside a origem do ressentimento que o pensamento crítico faz germinar nos trabalhadores. Trata-se de uma herança coronelista que confere autoridade intelectual a quem detém o título acadêmico. Tom de voz, expressão facial, linguagem gestual denunciam a arrogância, mesmo quando a linguagem verbal fala de democracia. Coincidentemente, no momento mesmo em que escrevo este texto, ocorre o episódio envolvendo o “cidadão não, engenheiro civil formado, melhor que você”! Conforme então notou, assertivo, meu comparsa de conspiração blogueira, o caso “condensa em alguns segundos 520 anos de história” (confira aqui: https://www.temperancapolitica.com/post/o-engenheiro-e-o-fiscal).
Quando, às vésperas das eleições presidenciais de 2018, esses intelectuais saíram às ruas, com tendas, café e bolo, dispostos a dialogar com as pessoas historicamente oprimidas por sua crítica cáustica, já era tarde demais. Ao contrário do que acreditam, seus interlocutores episódicos não são bobos. Eles viram claramente o gesto desesperado de pânico que motivou a aproximação. Estavam certos! Bastou sair o resultado eleitoral para o esquete de compreensão democrática e dialógica ceder lugar aos sinceros insultos apontados contra a inteligência alheia.
As ciências sociais, no Brasil, incorporaram, como uma doxa, a sociologia crítica. A maior parte dos teóricos desta vertente veio da Escola Normal Superior Francesa. Eles compartilham o pressuposto do inconsciente. Durkheim, Bourdieu, Lévi-Strauss, Althusser, Foucault, Lacan e tantos outros supõem que conseguem objetivar, na condição de pesquisador profissional, a verdade latente no inconsciente de um modo inacessível aos não acadêmicos. A dificuldade de ver uma versão alternativa das ciências sociais relaciona-se com o atalho explicativo da vida social que o inconsciente oferece, ao mesmo tempo em que estimula a autocomplacência do intelectual, colocado no vértice da hierarquia cognitiva da humanidade. Não se trata, bem entendido, de negar a contribuição fundamental da noção de inconsciente, mas apenas de contestar o achatamento que a sociologia crítica opera da capacidade humana de tomar decisões racionais.
Entretanto, há outros sistemas teóricos possíveis. Em lugar de uma sociologia crítica, Boltanski sistematizou uma sociologia da crítica, a partir do pragmatismo e da etnometodologia. Ele buscou investigar as condições de exercício da crítica pelas pessoas comuns. Descreveu gramáticas êmicas por meio das quais todos elaboram um diagnóstico das próprias condições de vida e tomam decisões pragmáticas.
Os intelectuais, de sua parte, afeiçoados a sistemas teóricos muito coesos e incapazes de operar com a ambiguidade e a contradição (por mais que falem de dialética), têm dificuldade de compreender as formas de pensar e agir do povo. Elas operam com o pragmatismo e não com a lógica formal. O formalismo seria, em outras palavras, a alienação do intelectual. Nesse sentido, a alienação do trabalhador está para o senso crítico formal do intelectual como a alienação deste está para o senso prático do trabalhador. Alienação e senso crítico são, pois, duas dimensões da condição humana, compartilhada pelas oito bilhões de pessoas que aqui estão. Mudam apenas as posições sociais a partir das quais se elabora o diagnóstico crítico.
As fake news oferecem um caso interessante para essa linha interpretativa. Elas não teriam força para convencer as pessoas a votar em Bolsonaro. Elas ofereceram uma justificativa para quem já não queria votar no PT. E não apenas por questões de escravismo arraigado como quer a esquerda, senão também por valores morais religiosos. A elite econômica não queria o PT por conta da distribuição de renda, da democratização da universidade e da eletricidade; os pobres, por aderirem à pregação da igreja.
As fake news produziram uma ideologia legitimadora do anti-petismo. Slavoj Zizek sugere que toda ideologia tem um núcleo real. No caso das fake news esta verdade nuclear se situa na crítica que a esquerda nutre pela religião popular. Quando, no segundo turno das eleições, Haddad disse que Bolsonaro resultava do casamento entre o neoliberalismo desalmado de Paulo Guedes e o charlatanismo de Edir Macedo, pode ter perdido, em uma frase, os dez milhões de votos que o separaram da vitória. E, ato contínuo, para cravar de um só lance, todos os pregos de seu caixão eleitoral, esnobou um latim: auri sacra fames.
A intelectualidade abandonou o diálogo com a religião popular. Isso decorreu da arrogância, que cresceu na razão mesma da internacionalização e profissionalização da universidade, levada a curso ao longo dos governos do PT. O vácuo deixado foi ocupado pelos neopentecostais. “A teologia da libertação optou pelos pobres, mas a teologia da prosperidade quer que os pobres deixem de ser pobres”, dizem os pastores. Daí a sugerir a mamadeira erótica foi um passo curto.
Do mesmo modo, a aversão ao patrão e a preferência pelo trabalho por conta própria, é recorrente na antropologia brasileira do trabalho. Está em Juarez Brandão Lopes, José Sérgio Leite Lopes, Moacir Palmeira, Lúcio Kowarick e muitos outros. Isso é muito anterior à uberização do trabalho e à teologia da prosperidade. Embora o idioma do empreendedorismo se correlacione com a engenharia neoliberal, a preferência pelo trabalho por conta própria entre os estratos mais pobres da sociedade não constitui uma imposição das elites sobre um povo indefeso e passivo. Trata-se antes de uma aversão ao patrão escravista e de uma leitura pragmática da vida que as teorias formalistas da universidade brasileira não conseguem captar, grosso modo.
Essa tendência de longa duração ofereceu terreno fértil à recepção do bolsonarismo – que, no entanto, não lograria êxito se o diálogo respeitoso entre intelectuais (como Dom Helder Câmara, Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão, Dom Pedro Casaldáliga e tantos outros, nos anos 1980) e povo não tivesse cedido espaço ao afastamento elitista. A pretensa crítica acadêmica da religião é duplamente ineficaz. De um lado, ela é formalista e incapaz de operar com as variáveis da pragmática popular; de outro, ela compreende um discurso antidialógico, que desloca a agência e cognição dos trabalhadores, porque enunciado no idioma acadêmico que, historicamente legitimou o domínio dos filhos dos coronéis egressos de Coimbra. E o povo, que não é estúpido, sabe disso. A esquerda, colonizada pela Escola Normal Superior Francesa, ficou incapaz de fugir desta armadilha.
O preconceito religioso da esquerda incorporou a hipótese marxiana da religião como ópio, mas negligenciou inteiramente o alerta weberiano segundo o qual quanto mais sofrido um povo, tanto mais religioso é. Em outras palavras, quanto menores as chances de vida boa no presente, tanto maior a tendência de busca do sentido da existência além túmulo. Isso é uma opção pragmática para evitar o suicídio e a morte social.
A esquerda se tornou igualmente religiosa. Sua religião é o ateísmo. Tanto assim que confunde o laicismo com censura de qualquer outra religião que não seja a sua própria. Um Estado laico não é necessariamente um Estado ateu. Nem exclusivamente agnóstico, católico, umbandista, protestante, budista ou o que quer que seja. Um Estado laico é necessariamente ecumênico; isto é, que garante o direito à liberdade de crença. Mas a intelectualidade tem pânico das religiões alheias. Tudo se passa como se a hipótese do ateísmo contasse com evidências científicas sólidas. Basta, portanto, pronunciar-se o termo Deus, em uma reunião universitária, para que o desconforto físico tome conta dos intelectuais presentes. Mas a racionalidade científica é incapaz de solucionar os problemas metafísicos que ela mesma formula. Tradições cristãs sediciosas espalhadas pelo mundo (como as Comunidades Eclesiais de Base), foram prematuramente esvaziadas não apenas pela reação conservadora (como a renovação carismática), senão também pelo dogmatismo ateísta que vestiu a fantasia de pensamento crítico.
Temos hoje um presidente que produz identificação entre os ressentidos com a prepotência deste discurso. O terraplanismo não constitui apenas um epifenômeno do literalismo bíblico. Ele resulta da lei de ação e reação; é filho bastardo das pretensões de distinção intelectual. O drama político que disso resulta não será resolvido com um cafezinho de quatro em quatro anos, com uma guerra de insultos entrementes. Mais que isso, será preciso assumir a paternidade e a responsabilidade pela co-educação respeitosa.
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