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Cleber Dias
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Uma parte relevante do debate público sobre políticas culturais no Brasil enfatiza a suposta originalidade histórica das medidas dos governos do PT nessa área. Segundo se argumenta, as ações do Ministério da Cultura sob administração do PT teriam representado uma inflexão histórica singular nas relações entre o Estado e a cultura. Geralmente, aponta-se para o alcance ou para a própria atuação institucional sistemática com relação a cultura, elementos que nunca teriam existido antes, segundo se diz.
Tais interpretações, todavia, diminuem ou ignoram mesmo o longo histórico de ações estatais com relação à cultura no Brasil. De certo modo, essas interpretações, que fazem da história uma espécie de tábula rasa, são bastante seletivas, omitindo dimensões importantes do passado das políticas públicas brasileiras. Intencionalmente ou não, acaba-se por reproduzir aí, também no que diz respeito à cultura, o chavão eleitoral e propagandístico hiperbólico de Lula, que afirmava e afirma ainda que “nunca antes na história desse país”...
Na verdade, contudo, seria em grande medida errado dizer que depois de 2003 viveu-se uma nova era nas políticas culturais brasileiras, ainda que algumas inovações tenham de fato sido realizadas, como já veremos. Visto de uma perspectiva histórica mais ampla, porém, a continuidade talvez seja um dos principais aspectos das políticas culturais entre 2003 e 2016.
Conforme amplamente destacado pela bibliografia especializada, o período entre as décadas de 1930 e 1940 viu uma série de medidas para institucionalizar ações do poder público com relação à cultura, que mesmo assim já existiam desde antes. As mais emblemáticas disseram respeito à criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo, do Instituto Nacional do Livro, do Serviço Nacional do Teatro e do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (até hoje existente como um Instituto). Nessa época, houve ainda a criação de um Conselho Nacional de Cultura, o anúncio da intenção de criação de um instituto de estatística especialmente dedicado à educação e à cultura (que não se efetivou), assim como uma série de regulamentações, especialmente com relação ao rádio e ao cinema.
A atuação governamental com relação ao cinema fora mesmo notável. Ao longo das décadas de 1930 e 1940, vários expedientes políticos foram implementados a fim de tentar fortalecer a produção cinematográfica nacional. A importação de filmes virgens foi isenta de tarifas alfandegárias, enquanto a importação de filmes impressos, por outro lado, foi sobretaxada. Pouco depois, a exibição de longas e curtas metragens brasileiros foi tornada obrigatória por força de lei. Houve ainda tabelamento de preços dos ingressos, além da criação de um Conselho Nacional de Cinema. As conclusões de Anita Simis, autora de uma importante obra sobre a história da relação entre Estado e cinema no Brasil, é cristalina como água. Segundo ela, “houve um incentivo deliberado por parte do governo visando ao desenvolvimento da produção nacional” (no livro "Estado e cinema no Brasil").
Ao longo da década de 1950, além do poder público ter mantido subvenções para certas instituições de arte privadas, típica e antiguíssima prebenda do Estado para com os artistas e produtores culturais, algumas das estruturas institucionais criadas nos anos 30 e 40 foram mantidas, enquanto outras foram desarticuladas. O Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por exemplo, foi mantido, ao passo que o Conselho Nacional de Cultura foi abolido. No entanto, em 1953, o que até então era o Ministério de Educação e Saúde foi desmembrado, dando origem ao Ministério da Educação e Cultura.
Já em 1961, o Conselho Nacional de Cultura, que tinha sido desarticulado em meados da década de 1950, foi reabilitado. Pouco depois, em 1966, já sob o governo militar, este Conselho foi reformulado e fortalecido. Como parte dessa reorganização, o mais antigo Conselho Nacional de Cultura sofreu uma pequena mudança de nome, passando a se chamar Conselho Federal de Cultura. Tiveram acento nesse novo Conselho alguns dos mais destacados artistas e intelectuais do período, figuras como Gilberto Freire, Raquel de Queiroz e Ariano Suassuna – este último, presidente de honra do Partido Socialista Brasileiro. Diferente do atual fanatismo ideológico sectário de Bolsonaro, nas décadas de 1960 e 1970, os militares no governo foram capazes de oferecer algum espaço político para indivíduos da oposição.
Logo o governo militar anunciou um ambicioso Plano de Ação Cultural, cujo propósito era oferecer recursos públicos para o financiamento de eventos diversos. Agências como a Embrafilme e a Funarte foram criadas no contexto dessas mudanças. Na mesma época, foi anunciada ainda a criação de um “Departamento de Assuntos Culturais”, substituído no final da década de 1970 pela “Secretaria de Assuntos Culturais” e novamente, em 1981, pela “Secretaria de Cultura”. Assim, mesmo se quiséssemos deixar de lado as importantes ações governamentais relativas à cultura empreendidas nas décadas de 1930, 1940 e 1950, algo para o que não haveria nenhuma justificativa plausível, é fora da dúvida razoável, em todo caso, que entre as décadas de 1960 e 1970 houve uma ação política estatal institucionalmente orquestrada, intencional, contínua e com recursos especificamente destinados a esse setor.
Não por acaso, Lia Calabre, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, onde coordenou o setor de políticas culturais, avalia as medidas dos governos militares para o setor como “período de efetivo fortalecimento da área da cultura” (em artigo no livro Políticas Culturais no Brasil). No mesmo sentido, Sergio Miceli, professor titular de sociologia da cultura da USP e espécie de decano do assunto no Brasil, avalia que as políticas culturais dos governos militares teriam sido, nas palavras dele, as primeiras a “inserir o domínio da cultura entre as metas da política de desenvolvimento social” (em artigo no livro "Estado e políticas culturais no Brasil").
De fato, houve um claro e deliberado esforço governamental nesse período para a articulação entre diferentes órgãos, cujo propósito era arquitetar medidas para favorecer o uso da cultura como um recurso para o desenvolvimento social e econômico. Até instâncias com articulações institucionais não tão usuais com a temática cultural na época, como o Ministério de Relações Exteriores e o Ministério da Indústria e Comércio, estiveram envolvidas com medidas nesse sentido. Articulações desse tipo ajudam a entender como e porque o Itamaraty aprofundou uma política externa baseada na noção de “diplomacia cultural” justamente durante o período da ditadura militar (ou civil-militar, como preferem os especialistas). Segundo conclusões de Anaïs Fléchet, dotada de mais recursos, essa diplomacia cultural “atingiu o seu campo de ação máxima em 1978” (no artigo As partituras da identidade: o Itamaray e a música brasileira no século XX). Nessa época, até artistas exilados e considerados pelo governo como “agentes filocomunistas”, como era o caso de Chico Buarque, tiveram suas obras divulgadas no exterior pelo corpo diplomático brasileiro, assim como receberam apoio para participarem de eventos internacionais.
Sem muita surpresa, portanto, finda a ditadura, criou-se um Ministério da Cultura em 1985, apesar da firme oposição do PT e outros partidos de esquerda. A contrariedade da esquerda diante da criação de um Ministério da Cultura em meados da década de 1980 pode atualmente soar quase como uma ironia da história, mas existiu de fato. Na época, artistas e intelectuais de esquerda argumentaram que a criação de um Ministério especialmente dedicado à cultura era supérflua, não correspondia às necessidades do país e que a separação do assunto da esfera da educação seria inadequada. Marilena Chauí, por exemplo, conhecida filósofa ligada ao PT, dizia que cultura não se deveria administrar, que a criação de um ministério traria mais burocracia, sendo, portanto, um desestímulo para a cultura, e ainda que “um ministério significa novos encargos fiscais. Como contribuinte, não quero pagar mais impostos”. Nas palavras dela, resumindo a posição do PT à época, “nós somos contra o Estado dirigindo a cultura, produzindo a cultura” (citado no artigo Cultura e política: a criação do Ministério da Cultura na redemocratização do Brasil).
A despeito de todas essas ponderações e oposições, o Ministério da Cultura foi criado por um governo de direita (José Sarney era o presidente) e esteve sob o comando de ninguém menos que Celso Furtado, cuja originalidade na articulação teórica entre cultura e desenvolvimento econômico vem sendo reabilitada recentemente. Um ponto aparentemente pouco explorado nas análises das elaborações de Celso Furtado sobre o assunto é o contexto histórico mais geral do período. Pois ao menos desde meados da década de 1970, influentes correntes da opinião pública brasileira já reconheciam na cultura um meio potencial relevante para promoção do desenvolvimento econômico, tal como articulava magistralmente a obra de Celso Furtado.
O Ministério da Cultura criado em 1985 foi extinto em 1990, durante o governo Collor, mas logo foi recriado, em 1992, no governo de Itamar Franco, para só voltar a ser desarticulado um quarto de século depois, em 2016, no governo de Michel Temer. Nesse quarto de século entre 1992 e 2016, uma das principais características das políticas culturais brasileiras foi a transferência do poder decisório a respeito do gasto público nesse setor para agentes do mercado privado. Nesse período, renúncias fiscais que admitiam a dispensa de qualquer tipo de contrapartida por parte das empresas que se valiam desses dispositivos tornaram-se o principal expediente para o financiamento público do setor cultural.
Em 2003, em um artigo na revista Tempo Social, a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda talvez tenha sido a primeira a reunir dados a esse respeito, formulando então uma contundente crítica ao funcionamento do financiamento público da cultura por meio de leis de renúncia fiscal ao longo dos anos dos governos de Fernando Henrique Cardoso. Segundo ela afirmava já naquela ocasião, essa forma de ação política acabava por atribuir ao Estado tão somente um papel de intermediário do processo de financiamento da cultura. No limite, acrescento por minha conta, o financiamento governamental da cultura por meio de renúncias fiscais representava um dispositivo legal e institucional novo, mas com propósitos e consequências práticas velhas: transferir recursos públicos para agentes privados.
Em 2003, o que Maria Arminda do Nascimento Arruda não tinha como saber é que esses dispositivos seriam não apenas mantidos, mas também fortalecidos durante os 14 anos seguintes. Obviamente, isso não diz tudo sobre as políticas culturais executadas pelos governos do PT. Houve ainda os chamados Pontos de Cultura, que incluíram atores tradicionalmente excluídos das prebendas estatais na lista dos beneficiados dessas políticas, além do pouco lembrado Vale Cultura, na minha opinião, a medida mais inovadora daqueles anos, atendendo diretamente ao consumidor e subvertendo, desse modo, a lógica histórica de concessão de recursos públicos apenas para o produtor cultural.
O ponto fundamental aqui, menos do que avaliar as políticas culturais dos governos do PT, é o equívoco histórico em imputar ares de ineditismo a elas. O poder público brasileiro executa políticas endereçadas ao setor cultural ao menos desde a década de 1930. Mais que isso, o modelo geral de algumas dessas políticas perdurou desde àquela época, como é o caso da ênfase na concessão de recursos para o produtor profissional. Os nomes se alteram, as ênfases mudam, medidas são abandonadas, outras novas são sugeridas, os orçamentos são ampliados ou reduzidos, criam-se e extinguem-se órgãos, fundem-se outros, mas nada disso equivale a inexistência de uma política pública. Eventuais mudanças ou mesmo interrupções não apagam da história as políticas implementadas. Acaso a abrupta descontinuidade das políticas culturais a partir de 2016 faz desaparecer da história o esforço político das décadas anteriores com relação a esse setor?
A própria alternância do poder político, para não falar das transformações de valores e mentalidades predominantes de cada época, acaba por implicar mudanças e descontinuidades. É inevitável. Novos grupos que alcancem o poder desejarão implementar suas agendas, abandonando, assim, certos projetos em favor de outros. A expectativa de que apenas políticas públicas implementadas infinitamente, sem quaisquer descontinuidades, sejam dignas desse nome, é conceitualmente errada e historicamente irrealista. O mundo muda e a roda gira. Porque as políticas culturais não deveriam? Na verdade, a descontinuidade de políticas como àquelas usualmente praticadas no setor cultural pode até encerrar uma certa oportunidade. Essas políticas, desde sempre bastante semelhantes em suas linhas gerais, talvez nunca tenham, afinal, servido as mais prementes necessidades do Brasil. Cerca de quarenta anos depois, algumas daquelas intuições de intelectuais e artistas de esquerda de princípos da década de 1980 a respeito das políticas culturais no Brasil talvez ainda tenham algo a nos dizer.
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