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CRÔNICA LÚDICO-ELEITORAL

Atualizado: 15 de jul. de 2022


Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


Restavam cinco quilômetros a serem vencidos, até a linha de chegada. A competição parecia perdida! Mesmo assim, pedalava com excelente vigor, chocando-me contra gotas de chuva, projetadas na face com a força do vento contrário.



A corrida iniciara no Centro da cidade, sob exigências reiteradas do primogênito. Ao cabo do tradicional decatlo que costumávamos realizar na praça, do parquinho aos monumentos, com saltos sobre bancos e acrobacias no gramado, tomamos o carro junto a sua mãe e irmão caçula, até uma loja de artigos veterinários. O estabelecimento distava cerca de quinhentos metros do local onde restava presa a bicicleta. A última prova seria uma disputa de velocidade. De um lado, a mamãe e os dois irmãos no carro; de outro, eu mesmo, na bicicleta. A linha de chegada seria o portão de casa.



Contava a meu favor o engarrafamento e nossa salutar tradição familiar, ainda não compreendida pelos pequenos, de dirigir o automóvel dentro dos limites de velocidade permitida. Aos últimos preparativos para a largada argumentei por brincadeira que a bicicleta estava longe. Brados de indignação foram então entoados pelo idealizador do jogo, impugnando a partida. Naquele momento havia percebido a vantagem que lhe franqueava minha necessidade de caminhar até o bicicletário. E a contestou!



Aos cinco anos de idade evocava o senso de justiça e equidade, na disputa. Ato contínuo, pedia enfaticamente que sua mãe desse meia volta. “Vamos começar onde o papai prendeu a bicicleta!” Contraditada a contornar e encarar outros bons cinco minutos na morosidade do tráfego das dezessete horas, minha companheira estaciona no local exato do bicicletário.



Contando com todas as condições indispensáveis de simetria desportiva, a largada finalmente é autorizada. Da altura em que principiei o relato, contudo, o copiloto automobilista já deveria ter vencido todo o engarrafamento, adiantando-se na pole position. De minha parte, imprimia a haustos ofegantes o movimento indispensável para encurtar a distância entre nós. E, no entanto, ninguém no carro poderia contar com os perigos terríveis que me esperavam no caminho!



Em plena ciclovia, a poucos quilômetros da chegada, a travessia por obstáculos cortantes poderia mesmo encerrar a vida de um ciclista, literalmente no meio da brincadeira! E o desejo de não perder a corrida abria a possibilidade da perda do pescoço. É que outra competição era disputada na ciclovia, por dezenas de meninos. Tratava-se de uma luta de pipas; as quais, em pleno ar sob golpes de chuva, davam provas do vigor cultural que as anima. Crianças entre dez e dezoito anos empregavam os mais variados ardis para obter uma linha mais cortante que a dos demais, as quais cruzavam a passagem das bicicletas bem à altura da jugular.



Baixei a cabeça, erguendo um dos braços à guisa de escudo, desacelerando os pedais. Observei, aterrorizado e com irremovível atenção, cada movimento daqueles assombrosos tentáculos caçadores de cabeças. Finda a interminável travessia de dez segundos, rompeu incólume o pescoço as fronteiras do vale da sombra da morte! Mas a corrida estava irremediavelmente perdida!



O percurso restante assumiu então ritmo mais meditativo. Tornara-se incontornável a comparação entre meu filho de cinco anos e as crianças que defrontei no caminho. Familiarizado desde a gestação com processos abrangentes de interação linguística, banhados em intensidade afetiva, o primeiro conta com estímulos ininterruptos à modulação ética do próprio comportamento – do que o senso de justiça na competição lúdica oferece uma evidência empírica. Dos segundos, por seu turno, não conheço senão o efeito, isto é, o comportamento temerário no espaço público.



Poderia desta interação imediata inferir qualquer julgamento sobre as condições de educação familiar destes meninos? De modo algum! As causas do episódio são, como não poderia deixar de ser, muito complexas! Elas se referem à completa desconexão entre a produção das cidades, de um lado, e as tradições e bens culturais dos cidadãos, de outro. Fundam-se no caráter autoritário da política urbana. Formulando a mesma questão noutros termos, de onde provém a ausência de senso de proteção recíproca e coletiva que vigora nas nossas cidades – e que aqueles jovens apenas reproduzem? Da oposição entre a intencionalidade educativa dos pais, de um lado, e os valores anticivilizatórios objetivados na arquitetura hostil das cidades brasileiras, de outro.



O Estado com frequência não apenas despreza a cultura popular das comunidades urbanas; ele a criminaliza. Por vezes, quando chega às franjas das cidades, o faz para reprimir a exuberante espontaneidade cultural que caracteriza esses territórios. Onde o líder político que estrutura seu plano de obras a partir das demandas culturais do povo? Plataformas de candidatos, em todo espectro da lateralidade política, sequer arranham a superfície das possibilidades econômicas, políticas, educativas e culturais abrangentes que germinam no patrimônio lúdico das populações! Disto temos nova amostra no constrangedor debate eleitoral ora em curso!



Pior ainda, a miséria intelectual das candidaturas sequer é estressada por questões estruturais importantes, formuladas pela sociedade civil. Esta pequena crônica sobre o encontro tenso entre os artífices desta secular cultura das pipas e um ciclista, oferece exemplo heurístico. Porque, em lugar de criminalizar o brinquedo popular, não construir, em cada região da cidade onde a brincadeira tem lastro tradicional, uma arena apropriada e segura para o lazer dos praticantes?



A delimitação de um espaço apropriado, organizado, reservado, constitui uma etapa indispensável da civilização do lazer, em primeiro lugar, da vida social, em seguida, e da política, em última instância. As regras civilizatórias são, antes de tudo, objetivadas no território. A sinalização de trânsito, as fronteiras materiais que separam o espaço público do privado, que delimitam a propriedade das famílias, que distinguem esferas especializadas da distribuição do trabalho social; todas compreendem símbolos materiais de regras abstratas. Eis o que representam as marcações de campos e quadras de esportes – regras civilizatórias em estado objetivado.



Quando brincantes aprendem a modular os movimentos do corpo conforme linhas marcadas no chão, em situações lúdicas e emocionalmente intensas, experimentam formas elementares de autocontrole, moduladas pelo primeiro gênero de linguagem da história humana. A fuga da barbárie foi inaugurada quando o primeiro homem tomou um graveto e riscou o chão, traçando a linha divisória entre a pré-história, desprovida de escrita, e História Humana (assim mesmo, redigida com as maiúsculas que só a simbologia linguística nos oferece).



A proposta é, entretanto, mais complexa. Uma arena de pipas pode fazer bem mais por nossas crianças. Pode fazê-las cidadãs! Pode dizer-lhes que elas, seus gostos, seus desejos e suas formas culturalmente sancionadas de sociabilidade pública têm espaço garantido na cidade e na política urbana. Pode, ademais, ensinar-lhes que há lugar de brincar, lugar de trabalhar, lugar de tráfego de bicicletas e lugar de tomar parte ativa nos assuntos da polis.



Há mais! Uma tal arena incrementa a vida pública de seu entorno. Com a devida visão estratégica, pode-se estimular vasta cadeia produtiva, comercial e de serviços, dentro e fora desta área de lazer. O candidato que se sentir estimulado a extrapolar uma interpretação estreita da proposta, vislumbrando as amplas possibilidades de desenvolvimento econômico local nela potencialmente inscritas, deve começar lendo “Morte e vida das grandes cidades”, de Jane Jacobs. Especialmente os capítulos nos quais ela desenvolve o potencial urbanístico e econômico dos usos mistos e casados do espaço.


As pessoas precisam ter onde ir; e por razões variadas. Cotidianamente o dinheiro não tem asas; circula no bolso das pessoas. Quanto mais numerosos os equipamentos urbanos de lazer, tanto mais razões para sair de casa. Uma arena de pipas, sobretudo se tiver arquibancadas para torcedores (porque não romper com a monocultura das torcidas de futebol?) combina bem com uma loja de insumos para o brinquedo, com o comércio de doces, com papelarias, com vendedores ambulantes de alimentos, bibliotecas públicas, escolas de artes. E haverá, sem dúvida, outros "temas geradores" da economia local a informar o gestor que tem olhos de ver e ouvidos de ouvir! Os usos casados do espaço engendram fertilização cruzada; eis a hipótese de Jacobs.



Pouco antes da chegada do coronavírus, um grupo de jovens do bairro onde resido solicitou-me a redação de um a abaixo-assinado que eles queriam circular. Tratava-se de uma solicitação ao poder executivo por equipamentos esportivos. Reivindicavam tabelas e marcação de basquete no ginásio municipal do distrito, juntamente com a construção de uma quadra externa no seu entorno. Uma parte deles também costumava se reunir no coreto da praça local para batalhas de MCs. Agora, em plena quarentena, este mesmo coreto está sendo convertido em posto policial... :(



Como pai, não disponho de meios para educar, apenas em cooperação com minha companheira, crianças que são mais que meros filhos; são já cidadãos e políticos. Isto é, membros ativos da polis. Seu campo de atuação no mundo extrapola em muito o estreito círculo de minha influência. Eis a razão pela qual seria um equívoco grosseiro e leviano afirmar que a culpa pelo risco que atravessei, em meio às linhas com cerol, deve recair sobre os pais daquelas crianças. Somente uma cidade educadora pode formar coletivamente a civilização democrática e equitativa que todos desejamos! E apenas uma política urbana participativa, inclusiva da cultura popular, pode gestar a educação significativa. A saber, aquela capaz de fazer germinar, no bojo das tradições êmicas, valores éticos!



 
 
 

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