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CULTURA CONTRA O ESTUPRO

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


O podcast de 23 de outubro do grupo jornalístico Mamilos abordou a cultura do estupro. O diálogo entabulado renderia meia centena de artigos, dada a densidade das ideias apresentadas pelos dois debatedores. Quero comentar aqui apenas um aspecto do programa que parece portador de possibilidades transformadoras abrangentes. A saber, a aquisição exponencial de capacidade intelectual do homem quando liberto dos grilhões cognitivos do patriarcado e do machismo.



Manuel Pinto ilustrou o fato de modo pleno! Ao longo dos 83 minutos da conversa este mediador de um grupo reflexivo com autores de violência sexual doméstica, em Maceió, demonstrou isto que podemos denominar a inteligência liberta do homem. Acostumado a dialogar com estupradores condenados pela justiça e, por isso mesmo encaminhados a participar do grupo que ele anima, o empreendedor social alagoano opera reflexivamente com faculdades afetivas, estéticas, sensíveis – aliadas às racionais – que são desde o nascimento sonegadas à formação das masculinidades brasileiras. “Ser cabra macho” é o nome da entidade na qual atua; nome instigante, que nos remete imediatamente à indagação: o que é “ser cabra macho”?



A definição estreita da masculinidade, no Brasil, nos conduz ao achatamento das experiências existenciais, relacionais, sensoriais e semânticas. Ser homem, tal como ser mulher, consiste em uma interminável lista de negações. Homem não chora. Não demonstra afetos. Não cuida da casa. Não brinca de casinha. Não brinca de boneca. Não abraça ou, pior, beija seus amigos homens. Em certos casos até aos filhos nega o ósculo santo. Não perde tempo com a dimensão estética da vida (antes, ocupa-se com a economia). Que triste, homem não dança! Rebolar? Estás doido, né? Com regular frequência, não gosta de poesia! Por vezes, não se responsabiliza pelos filhos (nossos moralistas condenam o aborto materno, quase nunca o paterno, bem entendido).



É verdade que há também uma lista de imperativos. Mas eles não são mais que afirmações histéricas que visam confirmar a adesão ao regime das negações. O homem se esforça por ser ativo porque lhe é vedada a passividade, mesmo nas ocasiões em que esta lhe convém. O homem deve ser o provedor; por isso sofre quando a mulher é melhor colocada no mundo do trabalho. E também por isso, aqueles que acessam meios de exercício do poder, nas suas variadas escalas, envidam todos os esforços para preservar as desigualdades salariais entre homens e mulheres – apesar do rendimento acadêmico das mulheres ser superior ao dos homens, o que evidencia a falácia da meritocracia brasileira. Homens devem ser agressivos para que ninguém desconfie haver neles docilidade e mansuetude.



Ocorre que a censura de vasto espectro de experiências possíveis, inscrita neste interminável catálogo de negações, sonega ao homem dados fenomenológicos indispensáveis ao pleno desenvolvimento de suas faculdades cognitivas. Cognição, sensibilidade, estética, afetividade, sensorialidade, motricidade não constituem esferas separadas. Elas se fertilizam reciprocamente. Eis talvez uma das razões pelas quais tanto as mulheres como os homens que não se definem a partir dos protocolos do patriarcado e do machismo não apenas progridem mais na escola como são invariavelmente pessoas mais fascinantes. Eis também porque Manuel Pinto exibe prodigamente habilidades reflexivas que tanto nos faltam!



Quando não há força nos argumentos, recorre-se ao argumento da força, diz-nos Jürgen Habermas. Esta frase resume quinhentos e vinte anos de história das masculinidades brasileiras! Nas Casas Grandes e nas Senzalas o senhor escravista, pater familias, incorporou a lei do arbítrio. Crianças e mulheres compreendem os infelizes súditos deste império patriarcal. À violência sexual contra o corpo da escrava negra, seguia-se a violência simbólica contra a esposa branca. Esta, em nome da imagem da família, deveria silenciar sua indignação frente à infidelidade do esposo. “Afinal, ele precisa dar vazão a seus impulsos de homem!” A ausência de autocontrole das pulsões, que alhures caracteriza a condição da criança, constitui o leitmotiv da vida adulta do homem brasileiro.



Some-se isto à coisificação da mulher, outra herança do escravismo patriarcal. Caio Prado Jr. sugere que o Brasil inaugurou um regime sui generis de escravidão. O escravismo do mundo antigo reconhecia no escravo suas qualidades propriamente humanas. O filósofo grego poderia ser escravo do romano, mas, ainda assim, filósofo. O soldado serviria ao senhor como soldado. Os poderosos da antiguidade não eram suficientemente obtusos para negligenciar as habilidades de seus servos. A escravidão moderna nega a humanidade do escravo! Converte-o em besta de carga, mera força de trabalho animalizada. Da coisificação do escravo no trabalho produtivo, passando pela coisificação da escrava na violência sexual, até a coisificação da mulher, no mundo contemporâneo, não há diferença de natureza. Trata-se do mesmo ethos patriarcal e escravista. A professora de economia da UFF e vice presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, Hildete Pereira de Melo calcula que o trabalho doméstico não remunerado, levado a curso predominantemente pelas mulheres, perfaz 11% do PIB brasileiro. Outros 11% seriam sequestrados pelo trabalho de cuidado com idosos, crianças, doentes, etc. À violência sexual se soma a violência econômica.



Adeptos do argumento da força e submetidos a vastas mutilações antropológicas no terreno dos afetos, os homens brasileiros seguem privados da força dos argumentos. Com cognição e sentimentos subnutridos, magistrados reunidos primitivamente em bando, humilham uma jovem mulher vítima de estupro que, sozinha, implora por justiça a ouvidos e corações atrofiados. É a cultura do estupro que, injetada a doses cavalares desde suas respectivas gestações, marca em seus corpos as disposições escravistas que embotaram a filogênese do homem brasileiro. Somente a cultura, no sentido original do cultivo das faculdades intelectuais, espirituais e estéticas, pode desviar o curso de sua degeneração.



Uma cultura contra o estupro, contra o patriarcado, contra o machismo. Uma cultura das novas masculinidades. É isto que Manuel Pinto proclama com vigor incomparável em sua reflexão! Que cada bairro de cada cidade deste país possa abrigar um grupo reflexivo como o “Ser cabra macho”! Que todos eles possam ser mediados pelas inteligências libertas de outros Manuéis Pintos! E que não apenas homens condenados por estupro sejam encaminhados para eles, senão também os juízes que tão amiúde os absolvem!



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