Cleber Dias
Em vários aspectos, a vida social do Brasil é assimétrica e desigual. Pesquisas sobre a cultura ou a história do país tendem apenas a refletir esse estado de coisas, concentrando-se nas regiões mais populosas ou economicamente desenvolvidas. Em estudos sobre a cultura, o lazer ou os esportes, tais disparidades parecem ainda mais acentuadas. Apesar de algumas evoluções nos últimos anos, quando pesquisas sobre esses assuntos foram realizadas no Norte, no Nordeste ou no Centro-Oeste do país, regra geral, a bibliografia brasileira a esses respeitos ainda se encontra bastante confinada aos estreitos limites geográficos das regiões Sul e Sudeste – sobretudo do Sudeste. Entre um feixe difuso de razões, enquadramentos teóricos específicos podem ser apontados como uma das causas de tal situação.
Outra característica das pesquisas sobre a cultura é a usual segregação de diferentes abordagens disciplinares. Historiadores e antropólogos, por exemplo, têm sido bastante dinâmicos na realização de pesquisas sobre o lazer e os esportes no Brasil. No entanto, ambos os grupos permanecem consideravelmente afastados uns dos outros. Os encontros, embora existam, ainda são raros e os diálogos pouco frequentes, o que é uma tremenda perda de oportunidades heurísticas para todos os interessados no estudo desses assuntos. Existem vários achados de antropólogos que podem ser assimilados, com muito proveito, por historiadores, bem como o contrário. Não por acaso, é mais ou menos antiga e frutífera a relação entre História e Antropologia.
Uma terceira característica de pesquisas sobre esses assuntos é a relativa desarticulação temática, que agora parecem constituir campos de estudo quase totalmente impenetráveis. Em oposição a essa tendência, deveríamos admitir que existem problemas que podem ser melhor compreendidos quando encarados de maneira mais ampla e geral. A organização da cultura, do lazer e do esporte é um deles. Em última instância, a adequada compreensão de cada um desses objetos só pode acontecer contextualizando-os à luz uns dos outros. Nenhum deles é uma variável independente, sem conexões de causalidade com outros aspectos da vida social, ou mesmo com outras esferas deste universo semântico. O aumento do tempo livre desempenhou um papel tão importante sobre as formas de fruição e consumo de arte e cultura, quanto os novos formatos de arte e cultura influenciaram na modulação do lazer.
Esta forma de abordagem, mais integradora e multidisciplinar, fazia parte do horizonte teórico das primeiras pesquisas sistemáticas sobre o lazer e os esportes, em meados das décadas de 1970. Com o tempo, porém, essa agenda se perdeu em favor de uma crescente especialização. Estudiosos do esporte, do turismo, do teatro ou do cinema, foram se distinguindo cada vez mais uns dos outros, até formarem comunidades acadêmicas autônomas; espécie de guetos universitários com suas próprias associações, congressos e periódicos. Por vezes, pode-se até mesmo notar certa hostilidade e preconceito recíproco entre alguns desses especialistas.
Além de eventualmente concorrerem entre si no mercado acadêmico de distribuição de recursos e prestígio, diferentes especialistas nesses assuntos podem também alimentar visões epistêmicas e conceituais divergentes a respeito de seus respectivos objetos de pesquisa, por mais semelhantes que sejam na prática. Estudiosos da cultura, por exemplo, podem encarar com desdém a ideia de tratar o assunto como mais uma forma contemporânea de entretenimento, tal como geralmente o fazem os estudiosos do lazer. A alegação usual é de que uma abordagem assim banalizaria a grandeza espiritual das artes, reduzindo-a a um passatempo qualquer. Assim, edifica-se um muro e confina-se um enorme universo aos limites puramente estéticos das artes ou dos pontos de vista dos artistas e produtores culturais, sem muitas considerações pelo público que consome espetáculos e obras de arte como uma forma de diversão. Estudiosos do esporte podem também enfatizar particularidades desse fenômeno com relação a outras formas culturais de lazer, alimentando o típico narcisismo disciplinar das pequenas diferenças.
Em outros termos, Pablo Alabarces, decano da antropologia latino-americana dos esportes, manifestou preocupações semelhantes com a crescente especialização nesse campo de estudos. Segundo avaliação dele, realizada há mais de 10 anos, mas que parecem ditas hoje, antropólogos do esporte pareciam afastar-se cada vez mais dos antropólogos, em geral, criando fóruns especializados, o que apesar de permitir certo aprofundamento nesta temática específica, também encerraria o risco de afastar importantes questões antropológicas mais amplas do horizonte desses especialistas. Historiadores do esporte e estudiosos do lazer também têm chamado atenção para a importância desses campos de pesquisa não perderem de vista questões sociais mais amplas. Talvez seja de fato a hora de animar ou reanimar tentativas para olhares mais abrangentes. A compreensão de práticas, atividades ou modalidades isoladas pode ganhar novos horizontes quando vistas de uma perspectiva integrada.
Contra o pano de fundo constituído por esses três elementos gerais, recentemente, convidei um grupo de estudiosos do lazer e dos esportes para apresentarem seus trabalhos conjuntamente. O resultado está reunido no livro Depois da Avenida Central: cultura, lazer e esportes nos sertões do Brasil (faça o download na íntegra abaixo).
O livro reúne oito estudos que analisam múltiplas dimensões da cultura, do lazer e dos esportes em diferentes regiões do Brasil: as recreações populares de um bairro operário do subúrbio do Rio de Janeiro, os esportes e outras diversões em diferentes cidades do Acre, o mercado do entretenimento em uma cidade do interior de Minas Gerais, a dinâmica histórica do futebol no interior da Bahia, a articulação de identidades através da participação em uma torcida organizada de um clube de futebol profissional do Ceará, bem como partidas e campeonatos de futebol amador em São Paulo, em Manaus e na região da bacia do rio São Francisco – nas cidades de Juazeiro e Petrolina, na divisa entre Bahia e Pernambuco.
Alternando abordagens históricas e antropológicas, os capítulos, em conjunto, oferecem uma visão panorâmica sobre a diversidade de circunstâncias que podem envolver o modo como se organizaram e se organizam a cultura, o lazer e os esportes no Brasil. Em comum, o interesse em ampliar a visão sobre estes fenômenos, não apenas alargando o escopo geográfico e oferecendo estudos sobre regiões ainda relativamente pouco explorados pela bibliografia especializada nesses assuntos, mas também e talvez sobretudo, desafiando certos lugares comuns que marcam parte da reflexão sobre a cultura, o lazer e os esportes no Brasil. Ao contrário de certas prescrições usuais ao imaginário nacional sobre a vida no “interior” do país, isto é, sobre a vida fora das capitais ou das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, os estudos aqui reunidos revelam que os sertões, que são muitos e estão em todos os lugares, não são, nem nunca foram, desprovidos de lazer e de cultura. De certo modo, e esta é uma tese implícita ou explícita que o leitor encontrará no livro, o Brasil é um grande sertão, que começa precisamente onde termina a Avenida Central.
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