A suposição equivocada de que a sociedade é incapaz de resolver seus próprios problemas nos condena ao atraso e às teias do clientelismo político
Cleber Dias
No último sábado, ao lado de Silvia Amaral, Aira Bonfim e Giovanna Togashi, participei de uma edição do Sesc Ideias, iniciativa do Sesc São Paulo para promover debates sobre temas da agenda contemporânea. Nosso assunto foi o modo como se relacionam corpo, política e cultura.
Seria redundante tentar reconstituir toda a conversa em detalhes, que está disponível na íntegra no canal do projeto no Youtube, que conta com amplo e variado repertório. Vale a visita.
Vou apenas comentar brevemente dois tópicos inter-relacionados que julgo resumirem algo que perpassou toda a conversa e que acredito não ter sido capaz de expor suficientemente no calor da hora. De um lado, os modos de participação política no Brasil; de outro, o papel do Estado no provimento de serviços ligados ao lazer, as artes, a cultura ou aos esportes.
Parte do nosso imaginário prescreve o povo ou a sociedade como entidades alienadas da política. De acordo com esses lugares comuns, a maior parte das pessoas ignoraria os próprios direitos, não reconheceria a legitimidade de reinvindicações, não saberia das possibilidades de acesso a espaços públicos e faria pouco caso dos acontecimentos políticos. Há um viés depreciativo nessas avaliações, está claro.
Em minha visão, no entanto, esse diagnóstico supõe limites muito estreitos para definição do que seja participação política. Filiar-se a um partido, associar-se a uma entidade de classe, engajar-se em uma associação, participar de passeatas nas ruas ou seguir de perto o dia-a-dia da política profissional, seguramente são formas muito relevantes de participação, mas certamente também não são as únicas e talvez nem as mais importantes.
Ao lado dessas, há uma infinidade de outras maneiras de atuar politicamente. As igrejas, por exemplo, têm funcionado como espaços poderosos de articulação comunitária, com profundas consequências políticas, como os acontecimentos recentes têm revelado. Wecisley Ribeiro Espírito Santo, meu parceiro neste blog, já tematizou o assunto aqui.
A despeito do difundido entendimento de que somos um povo apático e alienado, além de ordeiros e pacíficos, historiadores e antropólogos registram inúmeras maneiras inventivas de agenciar modos alternativos de participação política, para não falar das revoltas e rebeliões nossas de cada dia. Clubes dançantes, blocos carnavalescos, grêmios teatrais ou times de futebol são algumas dessas formas alternativas de organização política. É verdade que nada disso coincide com os termos prescritos por certos manuais de teoria política. Mas aí talvez seja um problema dos manuais.
Criticar esses modos populares de organização com a esperança de substituí-los por outros, mais formais, mais de acordo com os manuais e supostamente melhores e mais sofisticados, seria como esperar que brasileiros se tornassem dinamarqueses. O problema é que o Brasil não é a Dinamarca.
A noção de que o povo ou a sociedade são alienados, apáticos e incapazes de agir por conta própria remete-nos ao outro assunto que atravessou nossa conversa no Sesc Ideias: o papel do Estado no provimento de serviços ligados ao lazer. Uma vez que o povo ou a sociedade são tidos como débeis, alguma forma de tutela logo se apresenta como contrapartida lógica e necessária. Há mesmo quem identifique no regular apelo em favor de intervenções estatais em várias dimensões da vida social, as causas ou as consequências do autoritarismo da cultura política brasileira.
Precisamente dentro desse espírito centralizador e autoritário, a partir do fim da década de 1930, o Estado passou a subsidiar regularmente as artes e a cultura. Na época, antes de um certo modelo de financiamento público de cultura cristalizar-se, havia ainda espaço para disputas. Grupos amadores, formados por estudantes e outros entusiastas, contestavam ofertas de apoio financeiro estatal a setores empresarias das artes e dos espetáculos. Ao invés disso, reivindicavam que a atuação governamental privilegiasse grupos mais diretamente ligados a propósitos educacionais. Nessa celeuma, entidades como o Teatro dos Estudantes do Brasil, do lado dos amadores, e a Casa dos Artistas, do lado dos profissionais, apresentaram opiniões e demandas abertamente conflitantes.
Com a vantagem da visão retrospectiva, nós sabemos quem venceu essa parada. Empresários como Luís Severiano Ribeiro, sócio da Atlântida, um bem-sucedido estúdio cinematográfico da época, aproveitou-se inteligentemente das vantagens oferecidas pelo poder público e ampliou sua fortuna. Até hoje, a família Severiano Ribeiro, depois de ter abandonado o ramo da produção de filmes, controla ainda uma poderosa rede de exibição cinematográfica. Enquanto isso, 90% dos municípios brasileiros não têm cinema.
No Brasil, um Estado dadivoso sempre fora bastante seletivo sobre quem se beneficiaria de suas prebendas. Grupos bem circunscritos foram eleitos como objeto de atenção e favorecimentos. Para os excluídos desse círculo de privilegiados, restou a omissão ou a repressão. Festas populares e bailes em favelas foram e são proibidos, ao passo que campos de futebol de várzea, construídos por conta própria e por meio de esforços coletivos, foram e são aniquilados pelo poder público – sem dó ou piedade. Conforme sábia declaração de um líder comunitário e diretor de um museu da Maré, no Rio de Janeiro, registrada pela pesquisa de doutorado de Diogo do Nascimento, “área de lazer na favela só quem destrói é o Estado”.
A reversão desse estado de coisas exigiria, parece, a vitória dos excluídos sobre os incluídos no acirrado campo do conflito distributivo dos orçamentos governamentais. Como fazê-lo diante de interesses tão difusos e pouco acomodados aos modos formais de organização para o lobby e para o suborno, que são as maneiras habituais através das quais se conquista espaço nos orçamentos públicos, é um problema a ser equacionado por quem aponta para o Estado como única solução.
Sob o meu ponto de vista, porém, a atuação do Estado tem sido não apenas cronicamente incapaz de reverter desigualdades no acesso ao lazer, como se mostra até mesmo nociva nessa ceara em alguns casos. Trata-se de uma constatação bastante óbvia. Para confirmá-la, basta confrontar os gastos públicos com esporte, lazer e cultura, vis-a-vis alguns indicadores disponíveis sobre o acesso à essas práticas. Apesar disso, a crença de que o Estado é a principal, se não a única solução, segue inabalada em amplos setores da opinião pública brasileira. Porque?
Não tenho resposta a essa questão, que é bastante complexa. No entanto, acredito que a suposição equivocada de que o povo ou a sociedade são incapazes é parte da resposta.
O Estado, esse agente indispensável em quaisquer iniciativas para estímulos ao desenvolvimento, com certeza pode muito, mas não pode tudo. Políticas públicas, como as economias de mercado, também têm falhas. Mais que isso, falhas de governos nem sempre se contornam apenas aumentando a dosagem do mesmo remédio. Às vezes é preciso mudar o remédio.
Soluções para vários dos problemas que assolam a sociedade brasileira estão na própria sociedade, conformada, afinal, por pessoas inventivas, ambiciosas e inteligentemente pragmáticas. Acreditar nos brasileiros e brasileiras talvez seja condição fundamental para um salto a frente.
Práticas de lazer populares, como o futebol de várzea, os torneios de sinuca, os circuitos de pagode ou de forró eletrônico, além de uma infinidade de outras diversões, quase sempre vistas pelas elites intelectuais com desdém e preconceito, oferecem lições valiosas sobre como a cultura pode ser utilizada como ferramenta deveras útil para a geração de renda e oportunidades de – atenção ao detalhe – inclusão social produtiva – que é diferente da inclusão social improdutiva, orientada, esta última, pelo consumo e não pelo trabalho.
Longe de serem tão somente lazeres massificados, acríticos ou alienantes, como insiste certo chavão acadêmico, práticas como essas exibem universos culturais e economicamente vibrantes. Ao invés daquelas esgotadas fórmulas, repetida e sucessivamente adotadas pelas ineficazes políticas públicas setoriais, reside aí um dinâmico e criativo manancial para a inovação das políticas de lazer e cultura.
Com efeito, ninguém poderá nos salvar da pobreza e do subdesenvolvimento, a não ser nós mesmos. O poder transformador do Estado reside justamente em sua capacidade de amplificar forças que já existam ou estejam de algum modo latentes na sociedade. No campo da cultura, uma dessas forças são os mercados informais de lazer e entretenimento. O Estado deveria orientar suas ações para o fortalecimento desses mercados, a fim de ampliá-los, ao invés de negá-los e combate-los. Reinvindicações para que o Estado substitua forças de mercado estão na contramão da direção desejável e necessária.
Na busca por respostas para os nossos impasses, os dogmas e as soluções prontas podem ser deixadas de lado. Devemos dar vazão a nossa criatividade inovadora e intelectualmente rigorosa. Isso vale também para o modo de imaginarmos modos de fazer política. Nesse sentido, para resumir ao essencial, Estado e mercados devem ser parceiros, nunca concorrentes, menos ainda adversários.
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