Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Já mencionei aqui o comentário de Ladislau Dawnbor segundo o qual desenvolvimento econômico se faz com coesão social. Quanto maior a organicidade de um povo, tanto melhores suas condições de vida. Resta indagar o que significa condição de vida.
Referir-se-á à base material? Qual a função dos bens de consumo? A resposta que se antecipa é: melhorar a qualidade de vida. Há uma causa quase impensada para esta antecipação. Qual seja, a associação convencional entre riqueza material e qualidade de vida. Mas, como nos aconselha a filósofa Isabelle Stengers, é preciso ir mais devagar aqui.
Bens materiais nos prestam serviços. Quais são eles? A resposta é óbvia, mas também plural, conforme suas funções particulares. Um automóvel oferece o serviço da mobilidade; um celular, comunicação e informação; uma peça de vestuário, proteção do corpo. A voz de Stengers ecoa novamente. Estamos no caminho errado; há que se desacelerar ainda um pouco o pensamento que opera com economia de exame.
A suposição da utilidade dos bens materiais, por verdadeira que seja, encobre outros usos, mais importantes. Ela nos leva ao que Jean Baudrillard denomina “falácia utilitarista”. Objetos manufaturados são conhecimento objetivado, conforme a definição do antropólogo indiano Arjun Appadurai. O conjunto dos bens de consumo presentes em uma casa compreende um encadeamento sintático de significados. Isso também se dá na escala nacional; os montantes de renda destinados à infraestrutura bélica e aos equipamentos culturais, por exemplo, quando colocados lado a lado, dizem algo mais que a mera obsessão de um povo com a “segurança nacional” ou com o cultivo da erudição. Eles falam do espírito da nação. “Onde estiver seu tesouro, ali estará seu coração”.
Os objetos não constituem também apenas conhecimento ou significado em estado objetivado; eles desempenham papel classificatório, para lembrar o argumento de Mary Douglas e Baron Isherwood. Entende-se facilmente o que isto quer dizer quando se observa uma Ferrari ao lado de um Fiat Uno; os objetos são insígnias de pertencimento a determinada classe social. Nesta condição, eles separam, distinguem segmentos sociais de outros. Se isso não produz obrigatoriamente cisões e ressentimentos, também não contribui para produzir a organicidade de que nos fala Downbor. A violência no trânsito aí está para endossar o fato.
O mesmo se pode falar das griffes da moda. Elas parecem importar mais que a função protetora do vestuário, nas decisões de consumo. Como marcas de distinção, elas também não oferecem serviços de conexão social; ao menos não na escala abrangente de que temos necessidade. Os celulares, que também oferecem serviços de classificação, produzem ainda o fenômeno denominado por Franco Berardi de descorporalização da interação social. A mediação digital da comunicação elimina distâncias, é verdade, mas também produz invisibilidade dos que estão próximos. Ela também engendra uma “ilusão de comunicação”, conforme a expressão empregada pelo Papa Francisco, em sua última encíclica, Fratelli Tutti. Dialogamos apenas com pessoas afins, nas famigeradas “bolhas”, atrofiando inteiramente a capacidade de lidar com a diferença, à qual se reserva insultos verbais que instituem a barbárie.
Há mais, os objetos satisfazem necessidades e desejos. Mas, além de converter gradativamente os segundos nas primeiras, reduzem nossa resiliência. O automóvel amplia a mobilidade geográfica às custas da mobilidade corporal. O celular oferece meios de comunicação em escala global sacrificando a faculdade da percepção do ambiente imediato. As roupas protegem e dão conforto ao corpo, atrofiando defesas naturais e reduzindo seu limiar de desconforto – que tem relação diretamente proporcional com a percepção subjetiva de bem estar. Não é, pois, absurdo supor uma correlação entre o aumento do conforto material e a deterioração da saúde física, mental e afetiva.
Nenhum destes argumentos devem ser interpretados como negação da utilidade e da necessidade dos bens de consumo. Eles têm um objetivo apenas; a saber, demonstrar o caráter falacioso da associação entre riqueza material e qualidade de vida.
Onde então a locomotiva do desenvolvimento humano? Em primeiro lugar, vale lembrar que muitos serviços oferecidos pelos bens de consumo podem ser também prestados pelos seres humanos. Durkheim fala de distribuição do trabalho social, em lugar de distribuição social do trabalho, para notar que a produção e distribuição de bens e serviços é, em última análise, produção de relações sociais. A troca produz vínculo.
Economia do cuidado com o próximo e da educação recíproca são expressões com cheiro de clichê. Isso ocorre por conta dos usos triviais, apressados e vazios de substância que delas se faz. E, no entanto, vale muitíssimo à pena conceber a formação humana por meio de regimes concretos de associativismo para cuidado e educação recíproca.
É na escola que se planta o germe do desenvolvimento. Mas não nesta que aí está. A primeira tarefa da escola é fomentar associações. Artísticas, esportivas, políticas, sanitárias, administrativas, científicas, lúdicas, laborais. Estudantes devem se auto-organizar, em primeiro lugar, com base em suas livres afinidades. Em seguida, importa lançar luz sobre o caráter complementar das associações, evitando a tendência humana ao comportamento de seita.
Para que isso ocorra, o conhecimento curricular precisa se articular de modo equivalente. Associações coletivas para investigação em Química devem se dar conta de que há problemas para elas insolúveis, na ausência de diálogo com grupos de pesquisa em História. Grupos de teatro e equipes de basquete devem reconhecer que a diversidade de atividades lúdicas torna a escola mais exuberante e atrativa para quem a vê de fora; o que eleva sua conectividade extra muros – sua network, como se diz.
Finalmente, a comunidade escolar deve ser capaz de perceber que sua diversidade de associações internas precisa operar em sinergia. Quanto mais diversas e interdependentes forem as associações escolares, tanto mais desenvolvida a economia da escola. Estudantes dela egressos serão capazes de compreender que a riqueza de um país é seu povo, conforme se depreende da obra de Angus Deaton e Paul Romer, dois ganhadores do Nobel em economia. Que são os usos mistos e combinados dos recursos materiais que permitem o máximo aproveitamento de seus potenciais. Que tais recursos, muito mais que meros suprimentos de necessidades econômicas, operam como mediadores da vida social; e, portanto, podem produzir vínculos ou vincos. Finalmente, estudantes egressos de uma tal escola serão capazes de compreender que desenvolvimento humano é sinônimo de fertilização recíproca.
O leitor pode argumentar, com razão, que será difícil realizar na prática uma escola com esses moldes. Entretanto, realizar na prática uma economia do bem estar humano não tem sido trabalho mais fácil. Por gigantesca que nos pareça a tarefa histórica de transformar a estrutura educacional, ela está para a transformação da estrutura econômica como a retirada de um cisco no olho está para um transplante de retina.
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