Cleber Dias
Diante das críticas cada vez mais acentuadas que pesam sobre o governo Bolsonaro, apelos em favor da desobediência civil parecem ter se tornado mais frequentes. No entanto, a defesa em favor da desobediência civil amplia, ao invés de diminuir, a crise que afeta a estabilidade política do Brasil. Se não, qual seria o limite aceitável para estas desobediências e, mais importante, quem estabeleceria esses limites?
Tomo como exemplo para ilustrar minha breve reflexão a respeito uma situação análoga na qual estive envolvido mais diretamente há alguns anos atrás.
Em 2016, estudantes de várias universidades públicas brasileiras ocuparam prédios dos campis como forma de protestos contra o projeto de emenda constitucional que estabelecia limites indexados pela inflação para o crescimento dos gastos públicos pelos próximos 20 anos. Assembleias estudantis reuniram-se para discutir o assunto e decidir que estratégias poderiam ser empregadas para se opor à uma medida amplamente percebida como nociva. Excedendo absolutamente as suas competências e ao arrepio de todas as normas que regem a vida universitária, várias dessas assembleias decidiram então que os estudantes deveriam ocupar os prédios das faculdades e interromper as atividades acadêmicas desenvolvidas ali, mesmo que não houvesse nenhuma previsão normativa ou estatutária de que assembleias estudantis tivessem autoridade para uma coisa dessas. Foi um gesto extremo.
Em defesa dessa medida radical, estudantes argumentaram tratar-se de uma situação extraordinária que exigia medidas extraordinárias. De acordo com o argumento articulado pelos estudantes na ocasião, a excepcionalidade da situação justificava a excepcionalidade das medidas. Dessa forma, em suma, relativizaram o Estado de Direito e defenderam o Estado de Exceção – motivo pelo qual divergi de muitos dos meus colegas professores que apoiaram os estudantes, ao mesmo tempo que me opus publicamente àquela iniciativa, o que obviamente ainda me cobra algumas faturas.
De certo modo, é uma situação similar a que vai se delineando agora. Novamente, grupos de esquerda sentem-se no direito ou na obrigação de lançar mão de expedientes alheios ao ordenamento legal, a fim de tentar impor seus ideais políticos. É esta, afinal, a essência da desobediência civil. Contraditoriamente, porém, esses mesmos grupos tenderão a ver ações desse tipo como inaceitáveis sinais de autoritarismo quando desencadeados por adversários políticos. Todavia, alguém precisa lembrar-lhes que a obediência às leis e a defesa intransigente do Estado de Direito não é positiva apenas quando vai ao encontro das nossas expectativas. Esta é uma condição de possibilidade para a vida democrática.
Além disso, uma vez legitimado o uso de medidas extraordinárias para circunstâncias extraordinárias, todos estarão autorizados a decretar como extraordinárias as circunstâncias que assim lhe pareçam, de acordo apenas com as conveniências do momento. Logo, pode não tardar para que o recurso a esses expedientes se aponte contra os direitos politicos de grupos que estejam em minoria no momento e por isso mesmo incapazes de fazer valer suas expectativas pelas vias institucionaos usuais, isto é, por meio da obediência civil.
Uma diferença do cenário atual diante do contexto de 2016, é que agora os grupos de esquerda já não estão sozinhos nessas batalhas. Grupos de direita também têm apelado para a tal da desobediência civil como recurso legítimo para a luta política. Quem teria lhes ensinado esse extraordinário caminho? Prevalecerá à lei do mais forte ou do mais disposto a desobedecer mais vigorosamente as regras que ordenam nossa vida civil?
Só posso desejar que não, pois hoje, como ontem, me oponho a essas alternativas, independente da coloração ideológica que lhes motive.
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