Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
O artigo do economista da USP, Flávio de Saes, intitulado “A controvérsia sobre a industrialização na primeira República” (1989), oferece vasto campo para a reflexão sobre os processos econômicos brasileiros, no passado, no presente e no futuro, porque elabora um inventário das principais polêmicas em torno do desenvolvimento econômico do país, em geral, e da industrialização, em particular. O ponto de partida do autor é a controvérsia explicitamente formulada a partir dos trabalhos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e das críticas que eles receberam. De um lado, a “teoria dos choques adversos” – que atribui o desenvolvimento da indústria às crises internacionais e ao declínio da atividade agroexportadora que a elas se seguem –, de outro, a teoria da “industrialização induzida pelas exportações”.
Um exemplo do primeiro ponto de vista viria do incremento e diversificação da atividade industrial registrado durante a Primeira Guerra Mundial, no país. O declínio da exportação cafeeira teria levado à redução da renda nacional, ao desequilíbrio da balança comercial, com consequente diminuição das importações e, por conseguinte, a sua substituição pelo desenvolvimento da atividade manufatureira. A redução da venda do café para o mercado internacional teria também depreciado a taxa de câmbio, encarecido as importações e protegido a nascente indústria nacional.
Ao contrário desta perspectiva, a teoria concorrente argumenta que as crises externas inviabilizam o investimento em tecnologia e insumos da produção industrial. A depreciação do câmbio aqui levaria ao encarecimento destes insumos e ao declínio do investimento em capital fixo. A expansão da atividade agroexportadora, inversamente, levaria a uma apreciação do câmbio, ao barateamento de insumos industriais importados e à elevação do investimento industrial.
Com o tempo, entretanto, o pressuposto de uma relação de exclusão mútua entre estas duas correntes de análise foi sendo superado. Saes evoca diversos autores que formulam abordagens mais processuais, fundadas em dados empíricos, superando uma perspectiva meramente formalista de análise. Por exemplo, Flávio e Maria Teresa Varsiani, que investigam a evolução da indústria têxtil brasileira. Segundo eles à desvalorização da moeda brasileira seguem-se períodos de crescimento da produção industrial, mas declínio do investimento em insumos industriais. Registraram, por outro lado, convergências temporais entre a elevação do câmbio e do investimento industrial; coexistindo, entretanto, com queda da produção.
O desenvolvimento da argumentação de Saes demonstra assim a necessidade de estudar não apenas a dinâmica da relação entre exportação agrícola, indústria nacional, taxa de câmbio, taxa de investimento, níveis de produtividade manufatureira, senão também sua evolução histórica e as mudanças qualitativas da relação entre estes fatores. Destaca-se, nesse sentido, a questão das pré-condições para o desenvolvimento da produção industrial em períodos de câmbio depreciado e crises externas. Um dos primeiros estudiosos a colocar explicitamente este problema foi Fernando Henrique Cardoso:
“... o processo de industrialização em qualquer região supõe, como pré-requisito, a existência de certo grau de desenvolvimento capitalista, e, mais especificamente, supõe a préexistência de uma economia mercantil e, correlatamente, implica num grau relativamente desenvolvido da divisão social do trabalho” (Cardoso, apud Saes, op. cit., p. 29).
O dilema da contradição entre investimento industrial, em períodos de grande exportação agrícola e câmbio apreciado, ou crescimento da produção industrial com câmbio depreciado decorre do estudo formal da relação entre estes fatores, enquanto seria necessário estudar sua evolução empírica. Deste ponto de vista, a atividade agroexportadora, sobretudo quando se expande para regiões e tempos nos quais o acesso a escravos escasseia – voltarei a este ponto – reclama investimentos para instalação de manufaturas de bens de consumo e força um processo de distribuição social do trabalho, na esfera da produção, e de complexificação das trocas mercantis locais, na esfera da distribuição. Estas transformações, intrinsecamente articuladas à produção e exportação cafeeira, convergem com o saldo positivo da balança de pagamentos e a ampliação de reservas cambiais, com valorização da moeda nacional e consequente barateamento dos insumos industriais necessários. É a partir destas condições prévias que o Brasil experimenta o crescimento da produção nacional, durante a Primeira Guerra Mundial.
O fim da escravidão constitui um fator pouco explorado por Saes, embora seja determinante para o estudo da formação das pré condições do desenvolvimento industrial de que fala Cardoso. É apenas sob condições de trabalho assalariado que o câmbio apreciado pode levar ao investimento em bens de capital. Conforme a célebre equação de Marx, o investimento em capital fixo exige que o valor da tecnologia, no Estado da arte mundial, seja inferior ao valor dos salários. O prodigioso desenvolvimento econômico e industrial de São Paulo, na primeira República ilustra este axioma:
“Tais pré-requisitos [enunciados por Cardoso, certo grau de desenvolvimento capitalista, pré existência de uma economia mercantil e divisão social do trabalho], no entanto, devem estar instalados antes que se estabeleça a produção propriamente industrial. Isto teria ocorrido no bojo da expansão cafeeira em direção ao oeste paulista em que, pela crescente escassez e progressiva elevação do preço do escravo, o fazendeiro passou a importar mão de obra livre” (Ibidem, p. 29) .
Nota-se, por efeito de contraste, que uma das causas profundas do atraso econômico brasileiro reside em seu atraso civilizatório que lhe valeu a condição de maior país escravocrata da idade moderna. Eis por que, em consonância com a fórmula marxiana, o produtor de algodão brasileiro empregava escravos no processo de enfardamento – trabalho que levava o cativo ao óbito precoce, dado o vapor que lhe subia ao pisar o algodão – enquanto a Inglaterra operava com enfardadoras mecânicas (Prado Jr, 1994).
Vale à pena extrapolar o estudo da primeira República para pensar, como faz Saes ao final de seu texto, nas implicações deste debate econômico no tempo presente. O argumento ainda vigente de que a depreciação do câmbio dificulta a importação de insumos industriais pressupõe o atraso civilizatório. Tomemos o exemplo da energia solar, dado o extraordinário potencial gerador do Brasil (em consonância com a teoria das vantagens comparativas). O investimento no setor se defronta com duas opções: 1- importar os insumos beneficiados da indústria estrangeira (silício com o grau de polimento necessário à produção dos painéis fotovoltaicos, por exemplo); ou 2- formar engenheiros e comprar patentes disponíveis para a produção nacional destes insumos a partir da matéria prima disponível (75% das reservas de silício estão em solo brasileiro). A primeira opção exige câmbio apreciado e, por conseguinte, desestimula a produção nacional pela competição das importações; a segunda, exige política educacional e vontade política (para comprar patentes).
É interessante notar, nesse sentido, que a ideia de uma relação de unidade e contradição entre café e indústria, na primeira República, conforme a evocação do texto de Sérgio Silva sugere (Saes, op. cit., p. 30), embora dotada de coerência, pressupõe que a importação de bens de capital constitui etapa incontornável do desenvolvimento industrial, sem se dar conta da impossibilidade deste tipo de investimento no Brasil, como decorrência dos baixos salários que desestimulam a sofisticação tecnológica. Ao criticar uma relação unívoca entre café e indústria – direta ou inversa (Ibidem, p. 32) – Saes, entretanto, preserva a suposição da relação unívoca direta entre importação de bens de capital e industrialização. Ao tratar da primeira República o texto não poderia, como hoje nos é possível, considerar a possibilidade de produção nacional destes mesmos bens, com base nas vantagens comparativas do país no terreno das matérias primas e da demografia.
Parcela majoritária dos recursos minerais que alimentam a tecnologia internacional procede do Brasil. Ademais, uma sólida política educacional em um país que tem a quinta maior população do mundo constitui iniciativa política da maior competitividade internacional – do que oferece evidência a incorporação dos melhores cérebros brasileiros pelas maiores universidades do planeta. Apenas para citar um exemplo bastante conhecido, o neurocientista Miguel Nicolelis, professor da Universidade de Duke, lidera mundialmente a linha de pesquisa considerada mais promissora do século XXI – à frente, da genética, inclusive –, a das interações cérebro-máquina.
Poder-se-ia argumentar, apenas parcialmente com razão, que a importação de bens de capital traz com ela conjuntos de expertises profissionais indispensáveis ao desenvolvimento da indústria. Não obstante, parcela considerável deste conhecimento é, por assim dizer, êmico e se desenvolve no interior das empresas exportadoras de tecnologia. Trata-se de um gênero de conhecimento prático, ligado intrinsecamente aos encadeamentos logísticos e produtivos de cada uma delas sendo, por conseguinte, impossível de importar. Vê-se, pois, que há uma verdade muito mais profunda do que vulgarmente se imagina sob a referência de Marx ao “laboratório secreto da produção”.
Eis porque Paul Romer, ganhador do Nobel de Economia em 2018, defende a hipótese do crescimento endógeno, e Angus Deaton, laureado com o mesmo prêmio em 2015, argumenta ser inútil ajudar financeiramente um país atrasado. Para o último, toda ajuda financeira que se puder oferecer a estes países ingressará nos mesmos circuitos econômicos tóxicos que produzem o atraso (Deaton, 2013). Para o primeiro, o desenvolvimento se processa a partir da formação de relações sociais e econômicas qualificadas pela educação (Romer, 1994). Igualmente Thomas Piketty (2014) aponta para um único fator que seguramente produz convergência econômica – e, portanto, estimula a sofisticação produtiva pela elevação dos salários – a democratização do conhecimento de alta complexidade.
Acrescento por minha conta que a circulação deste gênero de conhecimento pela sociedade civil produz ela mesma complexificação da estrutura social, ou a sofisticação da distribuição do trabalho social (a expressão durkheimiana que adjetiva como “social” antes o “trabalho” que sua “divisão” me parece mais feliz que a de Fernando Henrique Cardoso por enfatizar a produção da estrutura social mais que a produção material que a ela corresponde). A contribuição da escola para o desenvolvimento econômico, em geral, e industrial, em particular, não reside apenas, como se costuma pensar, na qualificação tecnológica da mão de obra, no nível individual; ela também precisa atuar no processo de sofisticação da distribuição do trabalho social. Não se trata apenas de formar engenheiros para conceber e criar tecnologia, mas coletivos múltiplos com vocações econômicas complementares. Para empregar uma metáfora esportiva, não são as habilidades técnicas individuais que vencem o jogo, mas a sinergia tática. Ora, um currículo participativo, construído a partir das atividades, oficinas e projetos equivocadamente concebidos como extra-curriculares, articulados em um ecossistema multicultural, não apenas interior a cada escola, mas que articule diversas escolas, seria capaz de formar disposições práticas para a constituição de uma distribuição do trabalho social sofisticada. A qualificação da mão de obra, por sua vez, eleva o valor social da força de trabalho, dada a incorporação de conhecimento de alta complexidade.
A sugestão de José de Souza Martins de que a industrialização da primeira República não teve caráter de substituição das importações, mas explorou “as possibilidades manufatureiras surgidas nas 'franjas da economia exportadora’” (Ibidem, p. 29), produzindo bens de consumo difíceis de importar, também traz um elemento fundamental para a reflexão sobre possibilidades de desenvolvimento mais que no passado, sobretudo, no presente e futuro. Largo percentual da economia contemporânea não se relaciona com produtos de primeira necessidade, mas com desejos produzidos publicitariamente. De modo que a formação cultural, artística, científica da sociedade, bem como a complexificação da estrutura social e da distribuição do trabalho, por meio de sólida política educacional, pode engendrar desejos inteiramente distintos daqueles alimentados pela importação da indústria externa.
Uma vez mais, portanto, a consideração séria das implicações econômicas da educação nos levaria a conceber trajetórias de desenvolvimento inéditas, pela criação de mercados originais, sequer imaginados no atual estado da qualificação do trabalho, no Brasil. O que nos impede de vislumbrar estas possibilidades é a doxa que nos nubla a visão, segundo a qual há apenas uma via possível de desenvolvimento econômico aberta pelos países já industrializados, que consiste em mimetizar a sua indústria. Não por acaso, a polêmica sobre a dificuldade de importação de tecnologia destes países nos leva ao cativeiro da apreciação cambial. Assim também no tempo presente, economistas industriais como Paulo Gala (2020) e Ha-Joon Chang (2004) não conseguem sair do beco sem saída teórico em que se encerraram, propondo políticas industriais para competição nacional com grandes empresas multinacionais. Competição que eles mesmos admitem difícil de vencer. A perspectiva de uma via unidirecional de desenvolvimento presente nesta vertente da economia se expressa na principal metáfora que seus representantes empregam – a da escada tecnológica. A aposta no desenvolvimento pela democratização do conhecimento de alta complexidade poderá, por outro lado, evidenciar no futuro que a subida tecnológica do Brasil, dada sua prodigiosa diversidade cultural e sua biodiversidade, talvez venha a se parecer antes com a copa frondosa de um jequitibá que com a linearidade entediante de uma escada.
Referências bibliográficas
CHANG, Ha-Joon. Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
DEATON, Angus. Theo great escape: health, wealth and the Origins of inequality. Princeton: Princeton University press, 2013.
GALA, Paulo. & RONCAGLIA, A. Brasil, uma economia que não aprende: novas perspectivas para entender o nosso fracasso. São Paulo: edição do autor, 2020.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ROMER, Paul. Theo Origins of endogenous growth. In Journal of economic perspectives. 1994.
SAES, Flávio A. M. de. “A controvérsia sobre a industrialização na Primeira República”. In: Estudos Avançados. Vol. 3, no 7, set/dez 1989. P. 20-39.
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