Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Em entrevista recente a Ciro Gomes, Pedro Cardoso afirmou ter formulado a mesma pergunta a muita gente, sem receber uma resposta satisfatória sequer: “em que a morte de Jesus salva a humanidade?” Ato contínuo, argumentou que a vida do Cristo, esta sim, deveria servir como inspiração ética. Eu teria exultado de alegria caso fosse um dos felizardos recebedores da indagação. Conversar sobre tema tão oportuno com interlocutor que tanto me alegrou as noites com seu Agostinho Carrara seria não apenas prazeroso, senão também formativo – dada sua largueza de perspectiva.
Não contando, entretanto, com tal fortuna, redijo aqui uma resposta possível já que o Evangelho tem setenta faces, como costumam dizer os sábios judaicos acerca da Torá. Jesus morre para levar à expressão máxima uma lei natural, tão incontornável quanto a gravitação – o amor. De tão relevante a questão de Cardoso foi respondida pelo próprio Cristo: “O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este, de dar a alguém a sua vida pelos seus amigos” (João 15: 12-13, grifo meu). O período grifado é uma chave para compreender o sentido da imolação na cruz. Trata-se de testemunhar (antes com exemplo prático que com palavras, e do modo mais cabal possível) um amor de natureza superior pelos que sofrem. Qualquer estudioso que se debruce seriamente sobre o Novo Testamento verificará a lógica rigorosa do extremo sacrifício que constitui seu núcleo profético. Vejamos.
Jesus chamou um publicano para ser seu apóstolo. Eis como os agentes de Roma, responsáveis pela coletoria dos tributos, eram conhecidos. Como decorrência de suas atribuições imperiais, publicanos compreendiam uma classe particularmente odiada pelos segmentos judeus que lutavam para se libertar do jugo de César, constituindo também alvos potenciais dos revolucionários armados – os chamados zelotes. Ao lado de Levi, o publicano, Jesus quis colocar Simão, um zelote, em seu colégio apostólico. Um comerciante escorchado pela cobrança dos publicanos, Judas Iscariotes, se uniu a eles, junto com trabalhadores, sobretudo pescadores, levados à penúria pela coleta dos publicanos, perfazendo doze sementes do Evangelho, das quais apenas uma não frutificou – vale dizer, não seguiu os passos do próprio Cristo, entregando-se ao sacrifício por amor à humanidade.
Onde a lei natural que impeliu Jesus, onze de seus apóstolos, seguidos de inumeráveis discípulos mártires, a se entregarem à morte em progressão exponencial? Novamente é o próprio Mestre quem fornece a explicação: “Na verdade, na verdade vos digo, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (João 12: 24). A asserção lógica que subjaz à imagem da semente é, portanto, a seguinte: quem retém a sua vida a está consumindo e esterilizando, quem renuncia à sua vida individual em nome do direito à vida de todos, fertiliza o solo do planeta. Novamente é preciso explicar melhor o acerto.
O egoísmo, o orgulho e a vaidade condensam a causalidade primeira de todas as tragédias registradas na história humana. A expropriação econômica perpetrada por César por meio dos publicanos expressa o primeiro vício. A opressão política que Pôncio Pilatos (governador da Judéia) e Herodes Antipas (tetrarca da Galiléia) exerciam sobre o povo humilde, bem como a inimizade entre ambos, decorrem do segundo vício. Caifás e Anás, respectivamente o sumo sacerdote na ocasião da crucificação e seu sogro (tão influente quanto o genro na religião dos Judeus), representam o terceiro vício – de que são vítimas contumazes os religiosos e os intelectuais.
Quando recomendou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, Jesus anunciou o único modo efetivamente eficaz de resistir à opressão econômica, até que seu caráter autofágico (demonstrado ulteriormente por Marx e Keynes) seguisse o curso natural de todo império. Dar a Deus o que lhe pertence consiste em partilhar o pão com seus filhos – “Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?” (1 João 4: 20) Enquanto o espoliador se isola e se enfraquece em seu desejo insaciável por mais riqueza (a exemplo do grão de trigo que, recusando-se a morrer, fica só), os espoliados que se ajudam reciprocamente veem seu grupo crescer em progressão exponencial – frutificam como o grão que caindo na terra morre. O crescimento das forças centrífugas que ameaçam tanto mais um império quanto maior ele seja foi endossado no século XX pelo sociólogo Norbert Elias; o fortalecimento progressivo das comunidades de sofrimento constitui fenômeno largamente registrado pela Antropologia. Mais ainda, o seminal "Ensaio sobre a dádiva" de Marcel Mauss, colapsa inteiramente a dicotomia entre assistencialismo e políticas sociais; de vez que circuitos de doação engendram vínculos robustos que ensejam o fenômeno da fertilização recíproca de cadeias produtivas. O livro dos Atos dos Apóstolos descreve a estrutura social de uma comunidade igualitária e justa, fundamentada nestes princípios econômicos.
Ao entrar em Jerusalém sobre um jumentinho de carga, Jesus sinalizou que não montaria o cavalo, em uma guerra revolucionária contra Pilatos e Herodes. Antes, Sua nobreza silenciosa diante de ambos os envergonhou. E de tal sorte que se reconciliaram no processo de enviar o Prisioneiro Divino um ao outro para se eximirem da responsabilidade problemática de julgá-Lo. O que ocorreu aqui? Diminuto percentual do orgulho de ambos desmoronou frente à outra face que Jesus lhes apresentou – vale dizer, outro modo de contemplar o poder (e o orgulho que ele fermenta). Com efeito, uma das poucas frases formuladas pelo Cristo a Pilatos foi “Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado, mas aquele que me entregou a ti maior pecado tem” (João 19: 11). O arrefecimento dos conflitos fratricidas entre os poderosos – ilustrado na reconciliação entre Pilatos e Herodes – constitui apenas o primeiro passo para a lenta e multimilenária evolução humana na direção da fraternidade, da justiça e do amor (com efeito, há forte correlação entre redução da polarização e fortalecimento da democracia, como se verifica em múltiplos países). Mas não consta que a alternativa que se opõe à resistência pacífica – a saber, o terror jacobino, bolchevique ou congêneres – tenha logrado acelerar o curso da história na direção desejada. Gandhi, Mandela e Luther King, ao contrário, deram paços decisivos.
E, no entanto, há mais na frase de Jesus a Pilatos: “mas aquele que me entregou a ti maior pecado tem”. Quem foi? Ou melhor, quem foram? Anás e Caifás, os sumos sacerdotes, secundados pelos doutores e intelectuais judeus. Porque fizeram? Por inveja. Ofuscados com a luz do Cristo, com a clareza solar de Suas ideias, com a coerência de Seus exemplos e com a eficácia de Sua relação amorosa com o povo humilde, não suportaram! Importava matá-lo o mais rápido possível! Os zelotes, aos quais pertencia Simão, compreenderiam com menor dificuldade (quanto mais humildes fossem) a lógica cristalina de Jesus segundo a qual o amor é mais eficaz que a espada. Mas os sacerdotes religiosos e os doutores da Torá estavam cegos e surdos pela vaidade. A perseguição insana do prestígio foi, muito antes de conhecerem Jesus, a razão pela qual comerciaram desmedidamente com o poder secular de César, Pilatos e Herodes.
Jesus, por outro lado, abraçou os leprosos – que os poderosos proscreviam sob o estigma da impureza. Acolheu como discípulas e intérpretes da lei de Deus as mulheres – o que escandalizou os poderosos. Repartiu o pouco pão de que dispôs na Terra com milhares de esfomeados, saciando-os e alegrando seus corações – em contraste com a exploração econômica perpetrada pelos poderosos. Absolveu a mulher adúltera – desafiando a lei dos poderosos que absolvia, ao contrário, o homem adúltero (conforme lembra enfaticamente a obra de Chico Xavier). Poderia ter sido admitido, desde os doze anos, entre os doutores que se admiravam com Sua inteligência; contudo, escolheu a carpintaria de José. Herodes, desde sempre, desejou recebê-Lo em seu palácio, com banquete; Ele, todavia, foi cear com mendigos e esfarrapados. Pedro Cardoso, com razão, valoriza a vida de Jesus como exemplo de comportamento humano ético. Acrescento apenas que Sua vida inclui Sua morte.
O ator afirmou em sua entrevista ser necessário, como parte da saída do buraco político em que nos encontramos no Brasil, sermos menos religiosos. Tratar a política em termos laicos. Está certíssimo! Foram os religiosos que assassinaram Jesus. Esta é também a razão pela qual dificilmente um religioso poderia responder sua arguta indagação. A morte de Jesus salva a humanidade da hipocrisia, do cinismo, do orgulho, do egoísmo e da vaidade dos poderosos, opressores, intelectuais e religiosos. Jesus só contava com uma possibilidade infeliz de se salvar da morte: renunciar a tudo que proclamou e viveu, capitular a tudo que sua encarnação veio demolir. Antes dele, Sócrates seguiu o mesmo caminho, argumentando estar mais vivo que seus assassinos, mais livre que seus carcereiros. A ressurreição do Cristo realizou historicamente a intuição pertinaz de seu predecessor ateniense. Depois Dele, Seus apóstolos e discípulos morreram por mil métodos distintos de assassinato. Pedro foi crucificado de cabeça para baixo, Joana D’Arc foi queimada, Tiradentes foi esquartejado. No circo de César centenas alimentaram leões.
Como a gravidade, a renúncia à própria vida por amor aos irmãos, aos amigos e à humanidade inteira constitui lei natural incontornável. Newton descobriu a primeira; Jesus proclamou a segunda, deixando aos cientistas do futuro sua demonstração empírica. De todo modo a humanidade deverá aprender forçosamente que o metabolismo social é tanto mais saudável quanto menor apego ao próprio egoísmo apresentarem os metabolismos individuais que o constituem. Em nome do todo as partes, por vezes, devem se sacrificar. Eis a matemática rigorosa que Jesus nos ensinou com Sua vida inteira e, mormente, com Seu gesto extremo! Diante do abismo, algumas formigas formam uma ponte para que o formigueiro atravesse. Alguns poucos indivíduos se sacrificam até a morte (mas... “evangelho” significa boa notícia, hão de ressurgir) e, no entanto, o coletivo subsiste. Os insetos sociais vivem na prática a lei geral do amor por determinação bioquímica; quis o Deus criador que os seres humanos fossem levados à mesma conclusão por seu próprio livre arbítrio. Cedo ou tarde, chegaremos lá.
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