A avacalhação das opções de eleitores pobres e o escárnio de candidatos de origem popular são duas expressões complementares dos muitos preconceitos elitistas que marcam o imaginário político brasileiro
Cleber Dias
“No dia da eleição, não esqueça a máscara, o título de eleitor, o RG, a caneta e sua classe social”. A mensagem circulou amplamente na semana que antecedeu a última eleição. Seu conteúdo exibe uma concepção muito disseminada, embora quase sempre implicitamente, que supõe uma convergência cristalina entre voto e classe.
Segundo essa concepção, ricos votam ou deveriam votar em certos candidatos ou partidos, enquanto pobres, por outro lado, votam ou deveriam votar em outros candidatos ou partidos. Nesses termos, haveria uma maneira certa e outra errada de votar. Se um pobre votar em um candidato ou partido que supostamente represente os ricos, terá errado, conquanto terá acertado se votar em um candidato ou partido supostamente do lado dos pobres. Curiosamente, aí talvez uma das origens das nossas desigualdades, o mesmo não vale para os ricos, que sem embaraços podem votar em quem bem entenderem.
Obviamente, quem enuncia uma coisa dessa precisa julgar-se em condições de avaliar o erro ou o acerto dos votos alheios, mais até que o próprio eleitor, mais ou menos como um professor que corrige as provas de seus alunos. Além disso, o porta-voz dessa mensagem precisa também julgar-se imune a erros desse tipo, a ponto de acreditar ser capaz de chamar atenção daqueles supostamente menos preparados e suscetíveis a tais equívocos – meros aprendizes que deveriam apenas obedecer ou seguir o exemplo.
Mais ainda, a frase e suas implicações supõem também que certos programas políticos, adotados por certos partidos e candidatos, servem aos interesses de ricos ou de pobres, nunca aos dois simultaneamente. Assim, a política seria presidida por visões, valores ou interesses em tudo diferentes e sempre irreconciliáveis. Dado que quaisquer formas de conciliação seriam impossíveis por princípio, segundo essas concepções, a política restaria então converter-se numa batalha campal, onde o vencedor leva tudo.
Em um mundo imaginado de forma tão radicalmente polarizada, partidos ou candidatos que não aqueles a quem deveriam se dirigir o voto "correto", logo são enquadrados como inimigos dos pobres ou amigos dos ricos, conforme o caso. É uma forma sutil, porém insidiosa, de criminalizar a política, retirando a legitimidade de certas visões divergentes, quando não da própria divergência.
Na prática política, porém, não há fórmulas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Se houvesse, todos os países seriam justos e igualitários. Daí porque, em um regime democrático, todas as visões, ideologias e programas políticos são legítimos, dado que ninguém pode assegurar que esta ou aquela visão, ideologia ou programa levará, de maneira líquida e certa, a uma sociedade melhor, para não dizer que inexiste também acordo universal a respeito do que seja uma sociedade melhor.
Em conjunto, tudo isso expõe presunções elitistas e preconceituosas que marcam o nosso imaginário político, na direita e na esquerda. Há ainda outras expressões das mesmas presunções e preconceitos. Uma das mais escandalosas é a avacalhação sistemática de candidaturas de indivíduos de origens populares: o Beto da Farmácia, o Tião da Pipoca, o Gordinho da Frutaria, o Zé da Ambulância, o Macaco do Posto, o Preto Picareta ou um dos mais famosos nas últimas eleições, Robertinho do Gelo, candidato a vereador em Japeri, na Baixada Fluminense, cujo caso repercutiu na internet. Robertinho do Gelo recebeu apenas um voto, o dele próprio, não obstante os efusivos apoios de amigos, vizinhos e familiares durante os churracos e outros favores oferecidos por ele durante a campanha.
O escárnio diante da ambição de gente pobre e mestiça participar da política fundamenta-se, entre outras coisas, na falsa suposição de que apenas a riqueza, a nobreza de sangue ou o ornamento de títulos – para não mencionar a evidente cor da pele – podem outorgar inteligência e astúcia intelectual; como se apenas um branco, um magnata, um doutor ou alguém com sobrenome elegante fosse capaz de compreender a natureza dos problemas políticos de uma comunidade a fim de formular propostas de solução. Todavia, excetuando-se algumas poucas e honrosas exceções, a história política brasileira é a crônica do fracasso das nossas elites intelectuais compreenderem a natureza dos nossos problemas e menos ainda de formularem propostas capazes de solucioná-los, em conformidade aos anseios da população. Nosso subdesenvolvimento é a prova mais inconteste desse fracasso.
Alguém poderia especular que esses candidatos de extração popular são despreparados e buscam apenas vantagens pessoais na política, com pouco ou nenhum espírito público e preocupação com o bem comum, o que deveria desencorajar o apoio a eles. Em contrapartida, poderíamos retrucar que tais características, afinal, não são monopólio dos candidatos pobres.
A associação entre pobreza e estupidez ou despreparo é obviamente uma falácia, como sabe qualquer um que tenha convivido ou mesmo apenas entrado em contato superficial com a engenhosidade popular. Além disso, conforme bem destacou meu parceiro Wecisley Ribeiro, em artigo recente neste portal, a política não é constituída apenas por cálculos racionais e elocubrações abstratas, mas também por afetos, empatias, sentimentos de pertencimento e eu acrescentaria, por interesses.
Nesse sentido, porque o Tião da Pipoca ou o Gordinho da Frutaria seriam incapazes de compreender as expectativas políticas de seus eleitores e buscar meios de representa-las na política? Acaso Suzane Richthofen estaria em melhores condições para essa tarefa?
Cedo ou tarde, teremos de nos conformar que os políticos brasileiros não vêm, nem nunca virão, da Alemanha ou da Suécia. Nossos políticos são e serão inescapavelmente brasileiros, como eu e você, com todos os defeitos, pecados e limitações típicas, mas também com todas as virtudes e belezas.
Além disso, expectativas políticas dos eleitores, ricos ou pobres, são diversas e por isso mesmo não podem ser reduzidas a uma única coloração ideológica. Pobres votam em candidatos ou partidos de direita, sem que isso seja uma estupidez, tanto quanto ricos votam em candidatos ou partidos de esquerda, sem que isso configure uma infração. Em matéria de preferências eleitorais possíveis, portanto, simplesmente não há regras. Ganha quem melhor capturar e traduzir em programas as expectativas políticas de amplos setores da sociedade, para além dos grêmios universitários, que são ilhas letradas em meio a um mar de iletrados.
A simples existência de candidaturas como aquelas que citei acima – que são exemplos verdadeiros reunidos ao acaso – expõe que a política brasileira é, em alguma medida imperfeita, permeável à participação popular, ao mesmo tempo em que revela que grupos populares têm interesse no assunto, reconhecendo esse campo de atividades como um espaço social estratégico para a consecução de alguns de seus objetivos, que são diversos e por vezes contraditórios.
Não menos importante, a eleição ou a rejeição a certos candidatos mostra ainda que, de modo geral e de maneira igualmente imperfeita, os eleitores sabem o que fazem com seus votos, de acordo apenas com as suas próprias razões. Na esteira das repercussões da candidatura de Robertinho do Gelo, Tubarão, irmão dele, ao ser perguntado porque não teria votado no próprio irmão, justificou dizendo que faltava-lhe projeto. Candidatos tidos por despreparados por critérios e réguas daqueles mesmos que devem julgá-los, isto é, os eleitores, tendem a ser prontamente rechaçados. O mesmo destino tendem a ter aqueles vistos como incapazes de satisfazer as demandas populares, sejam elas quais forem. No Rio de Janeiro, o laboratório mais frenético e eletrizante da política brasileira, a mesma população que quatro anos atrás elegeu o pastor e prefeito Marcelo Crivella, depois de um governo errático, dá a ele agora fortes sinais de desprezo.
Assim, afora o evidente preconceito de classe, o conjunto de suposições e associações que marca o imaginário político brasileiro sobre a eleição e sobretudo por certos eleitores, reiteram compreensões idealizadas da política como um gesto racional de caridade altruísta, onde a defesa pragmática de interesses materiais imediatos é reduzida a um egoísmo mesquinho, impertinente e ilegítimo.
Todavia, imaginar a ação política única e exclusivamente em razão de valores abstratos e supostamente universais e desinteressados, é um privilégio para os privilegiados – novamente seguindo as ideias de Wecisley. Os pobres, por seu turno, têm problemas mais concretos a resolver e poucas ocasiões de fazê-lo. Por isso mesmo, quaisquer oportunidades de acessar vantagens ou benefícios é prontamente aproveitada, no que não é prova de mau-caratismo, mas de sagacidade.
Dentro desse quadro elitista e preconceituoso, os pobres são falsamente celebrados, nos discursos políticos da direita e também da esquerda, apenas enquanto estiverem na posição de obediência, subordinação e dependência. A reinvindicação por parte das classes populares do papel de protagonista na política, seja pela participação como candidatos, seja pela mera manifestação das suas preferências eleitorais por meio do voto, de certo modo subverte o enredo da trama e é logo desmericida como algo patético e estúpido. Na verdade, contudo, essas reinvindicações encerram conteúdos bem mais grandiosos que isso.
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