Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
É comum ouvir historiadores dizendo que os Estados nacionais não emergem como dom natural. Antes, são impostos pela força. A afirmação é verídica, mas decorre da oposição natureza-cultura. Benedict Anderson afirma que “em tudo aquilo que é ‘natural’ há sempre algo que vai além da nossa opção de escolha”. Mas, como sugeriu Kant, há escolhas cujas consequências sobre outrem não seriam desejadas para si. Isto vale tanto para a escala individual quanto coletiva. Tratemos da formação nacional filosófica e historicamente.
Em 1981 Robert Axelroad elaborou simulações matemáticas de interações recorrentes entre agentes egoístas. E concluiu que a evolução destas interações tem potencial para superar o egoísmo, com base na eficácia adaptativa da sinergia coletiva. Com o tempo, portanto, agregados cooperativos tendem a se formar mesmo em ambientes marcados pelo egoísmo. Mais recentemente, em 2018, Mukherje demonstrou com sua equipe de pesquisa a eficácia da cooperação sobre o comportamento individual, no esporte e na economia. A própria razão humana encontra, pois, evidências que fundamentam a vantagem da produção de coletivos sociais de escala crescente; da família ao clã, passando pela tribo, Estados provinciais, Estados-nação, a globalização multilateral, até uma eventual comunidade planetária, no futuro.
O leitor notará, com razão, que esta formulação lembra a filosofia da história de Hegel. Mas admitir a existência de uma verdade objetiva e a capacidade humana de se apropriar dela não significa conceber um processo cumulativo, desprovido de retrocessos. É verdade que a história não é uma ciência matemática. Mas como enfatizava Lévi-Strauss, há possibilidades de permutações matemáticas das combinações sociais possíveis. Da família nuclear à comunidade planetária, passando pelo Estado-nação, há um contínuo de escalas; ao qual corresponde um contínuo de intercâmbios econômicos e culturais humanos.
Estas considerações filosóficas admitem, como possibilidade não realizada, a hipótese romântica da produção crescente de afinidades culturais e linguísticas espontâneas que levaria à formação das Nações. Mas historicamente não foi o que se passou. Como o exemplo da Revolução Francesa demonstra, a imposição do Estado nacional se dá pela força. E, no entanto, mesmo aqui o romantismo e a revolução se complementam, na medida em que as armas do Terror cooperaram com a estética para produzir adesão popular aos revolucionários. Esta dimensão afetiva da formação do sentimento nacional não escapou a Tocqueville, embora sua abordagem psicológica não tenha se revelado capaz de explicar os desdobramentos da Revolução.
Faltava a Tocqueville um instrumento analítico apropriado como o princípio antropológico da segmentaridade. A historiadora Lynn Hunt aborda o problema da segmentação do Terceiro Estado – isto é, dos segmentos sociais que não pertenciam à nobreza ou ao clero – como causa da derrocada da República liberal, depois da primeira fase da Revolução Francesa. O exemplo pode nos suscitar muitas lições! Tomemos apenas uma delas: a evitação do partidarismo. Foi o descrédito social da organização partidária da política que impediu a organização da oposição, ofereceu terreno para que Bonaparte se colocasse acima das facções políticas e, em nome da defesa dos valores republicanos liberais, instaurasse um governo autoritário. Nada de novo ocorre sob o Sol dos trópicos!
Charles Tilly também contesta a imagem de “um povo uniforme que acolhe com prazer a chegada de uma reforma há muito aguardada”. Destaca “histórias locais da Revolução”, marcadas por “obstinada resistência popular”, por vezes, sob a forma da “evasão, da trapaça e da sabotagem e não da rebelião”. A contra-revolução aberta se manifesta “onde diferenças irreconciliáveis separavam blocos bem definidos de partidários e oponentes”.
Analisemos estes processos de segmentação social, que estão na base tanto da contra-revolução quanto de sua repressão autoritária, sobre o pano de fundo de outro fenômeno em jogo na Revolução Francesa, em particular, e na formação dos Estados nacionais, em geral – a coalizão social. O nacionalismo de populações que não possuem Estado próprio com fins de afirmação da independência política, de um lado, e o nacionalismo de habitantes de um território sob jurisdição de um Estado, de outro, embora diferenciados por Tilly, apresentam processos de formação homólogos e, nesse sentido, ajudam a identificar regularidades estruturais. No primeiro caso, o nacionalismo é uma resposta ao domínio de um povo por outro; no segundo, decorre da guerra. Em ambos, a formação da nação se segue ao advento de um inimigo externo.
Chegamos, pois a uma unidade complementar e contraditória entre duas tendências da vida social. O advento de fusões sociais de escala crescente, do que o Estado nacional oferece exemplo privilegiado, de um lado, e a produção recorrente de cisões sociais internas, que corroem a unidade nacional, de outro. Estas duas tendências regulares se correlacionam de modo inversamente proporcional. No Brasil contemporâneo predominam as tendências centrífugas e conflitivas em prejuízo das centrípetas e coesivas. Dadas as evidências que sugerem vantagens adaptativas destas últimas, na política e na economia, é de se esperar que este estado de coisas se reverta no futuro.
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