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ESCOLAS NÃO SÃO APENAS DEPÓSITOS DE CRIANÇAS

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias


Cleber Dias


Dentre as dezenas de mensagens que recebi acerca da última postagem neste blog, sobre os protestos pela reabertura das escolas, críticas a respeito das verdadeiras finalidades das escolas foram as mais recorrentes. Segundo essas críticas, escolas não são depósitos de crianças e o funcionamento dessas instituições não deve guardar relações com as necessidades dos trabalhos dos pais. Essas ponderações são relevantes e merecem observações adicionais.


Em primeiro lugar, devo reconhecer que esta dimensão de fato está ausente daquele texto. No entanto, achei e acho ainda que podemos tomar como pressuposto que um dos propósitos das escolas é educar as crianças e os jovens, de modo que a ênfase nesse aspecto soaria redundante. Se negligencio este aspecto, em detrimento de um outro, é porque muito já se fala a esse respeito, enquanto quase nada se menciona a respeito de todo o resto.


Em segundo lugar, mais importante, escolas têm como uma de suas missões educar e ensinar, mas não apenas. Embora reconheça que a afirmação frustre nobres ideais de educadores, de maneira nua e crua, devemos reconhecer que as escolas são também lugares para os pais deixarem os seus filhos enquanto se submetem a exploração do mercado de trabalho.


É historicamente errado conceber a educação escolar em desconexão com o mundo do trabalho. As escolas, tal como as conhecemos hoje, são correlatos históricos, no campo da educação, das transformações no mundo do trabalho produzidas pela "proletarização da força de trabalho". Não por acaso, o modo de funcionamento das escolas modernas tem muitas e tantas afinidades com as fábricas. Também não por acaso, os métodos de tortura empregados nesses dois espaços sociais são bastante semelhantes. Em ambos, predomina a disciplina, a obediência, a exaltação do desprazer, a reificação do sofrimento, a compulsão pela rigidez dos horários e assim por diante.


Há muitas pesquisas sobre o assunto, mas a fonte que tenho em mente aqui é Immanuel Wallerstein. Segundo esse sociólogo, escolas foram dispositivos indispensáveis no processo de conversão de unidades domésticas de produção autossuficientes em força de trabalho a ser vendida e comprada em relações de mercado. Dito de outro modo, escolas constituíram um dos expedientes históricos fundamentais na construção e disseminação do capitalismo industrial moderno. Não é uma coincidência, portanto, que escolas tenham se disseminado justamente no momento em que se acelerava a desarticulação do trabalho doméstico e de subsistência, ao mesmo tempo em que se ampliava um regime baseado na venda da força de trabalho em troca de dinheiro visando a produção de excedentes. Escolas, afinal, foram parte do arranjo necessário para a conversão de grande número de trabalhadores autônomos em empregados assalariados.


Impossibilitadas de empregarem os filhos no trabalho doméstico de produção de subsistência, dado que o envio de crianças para as escolas foi crescentemente se tornando compulsório a partir do quartel final do século 19, famílias tiveram então seu horizonte de possibilidades diminuído. Crianças e jovens que antes eram parte da força de trabalho das unidades domésticas de produção, transformaram-se em dependentes, cujas famílias, porém, precisavam, dali em diante, seguir sustentando-lhes e alimentando-lhes. Nesse ponto, já não havia outra escolha se não oferecer a força de trabalho no mercado em troca de pagamentos em dinheiro, a fim de adquirir os bens e serviços necessários a subsistência, que já não podiam ser produzidos pela própria família. Nesse sentido, as escolas estão para a educação assim como os salários estão para o trabalho, de tal sorte que é mesmo impossível pensar uma coisa, sem levar em consideração a outra.


Em resumo, escolas não foram pensadas para elevar o espírito de crianças ou cultivá-las nas artes do pensamento abstrato – ainda que possam também cumprir esse papel. Isso tudo é apenas a faixada ou a justificativa formal para tornar todo o sistema moralmente aceitável. Na verdade, escolas foram pensadas para viabilizar a produção, a reprodução e a acumulação do capital. Sem surpresas, portanto, a pobreza dos países subdesenvolvidos, isto é, a capacidade limitada de suas economias acumularem capital, tem muito a ver com as limitações no funcionamento de seus sistemas educacionais.


No Brasil de antes da pandemia, as escolas ao menos serviam como local mais ou menos seguro em que pais deixavam os filhos durante o período em que vendiam suas forças de trabalho no mercado, ao mesmo tempo em que atendiam miseravelmente propósitos propriamente educativos. Agora, nem isso.


Não confundam, porém, constatações com elogios ou apologias. Este não é o mundo dos meus sonhos. É apenas a descrição histórica do mundo tal como tem sido.


Merecem uma observação adicional também as mensagens que recebi opinando que professores deveriam voltar às salas de aulas apenas depois de serem vacinados. Compreendo os temores, mas discordo.


Professores são trabalhadores como outros quaisquer. Sem alarde, várias categorias de trabalhadores têm assumido muitos riscos desde o início dessa pandemia, sem o devido reconhecimento, diga-se em tempo. Notem que ninguém tem falado em priorizar a vacinação de funcionários de supermercados, farmácias ou postos de gasolina, serviços essenciais, cujo funcionamento tem sido assegurado pela bravura dos trabalhadores e trabalhadoras desses setores. Também pouco ou nada se fala dos motoristas, das cozinheiras, das faxineiras, dos caminhoneiros ou dos policiais, que igualmente seguem correndo riscos. Nesse contexto, seria razoável esperar um pouco mais de grandeza dos professores, especialmente daqueles que lecionam em escolas públicas e que têm na condição de servidores públicos a missão de – perdoem o pleonasmo – servir ao público, e não ser servido por ele.


Por último, ainda uma outra observação mais geral. Salvo algumas honrosas exceções, a sociedade brasileira tem estado de costas para as escolas e seus professores. A precariedade das instalações, dos salários e das condições gerais de funcionamento dessas instituições não é um acidente, nem uma obra do acaso. É resultado de décadas de abandono e pouco caso, que apenas nos últimos 30 ou 40 anos começaram muito lentamente a ser atenuadas. As causas e condições de tal abandono são muitas e têm sido diligentemente inventariadas pelos estudiosos do assunto. Entre outros fatores, eles apontam para a presença de imigrantes estrangeiros, para os efeitos da concentração fundiária, até a intermitência no funcionamento dos sistemas eleitorais democráticos.


Em contrapartida, professores também parecem agora virar as costas para a sociedade, justamente num momento bastante sensível, quando se reivindica, talvez pela primeira vez, o funcionamento das escolas. Não deixa de ser irônico.


Professores e sociedade seguem então divorciados, numa espécie de guerra permanente em que toda ação exige sempre uma reação. Assim, professores punem a sociedade tanto quanto têm sido punidos por ela. Como toda guerra, porém, injustiças serão cometidas e inocentes serão afetados. Crianças sofrem e jovens são prejudicados. Já não falo da aprendizagem, mas do conjunto da obra.

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