Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Esporte é imprevisibilidade. Nenhum sistema tático é capaz de antecipar o conjunto de decisões que o jogo forçosamente exigirá de cada participante. Estratégia alguma poderá esgotar respostas possíveis para as ocorrências fugidias à prospecção. As interações entre a materialidade dos corpos e a materialidade do mundo ambiente, embora regidas por leis físicas muito rigorosas, incluem tantas variáveis intervenientes que assumem o aspecto de movimento aleatório aos olhos humanos.
Embora regras, táticas, técnicas e jogadas ensaiadas tentem capturar o misterioso decurso de cada jogo, a verdade é que ele escorrega pelas brechas do planejamento como a água pelos dedos formando uma concha. Mesmo uma projeção simples e cotidiana de ação corporal – digamos, o intento premeditado de ultrapassar outrem pela esquerda, durante uma caminhada – pode ser contrariada pela emergência de fatos inesperados – como o surgimento de um jovem skatista que se antecipa à iniciativa do caminhante planejador, forçando este a arremeter pela direita. Com muito mais razão as condições de felicidade do esportista combinam a mais rigorosa capacidade de planejamento com o desapego do plano.
O drama e a atratividade do esporte decorrem do fato de cada competidor ser dotado de liberdade de decisões. Como na vida mais geral, o microcosmo do jogo não se comporta conforme a nossa vontade. Respeite-se no mundo a liberdade que se deseja para si e o estresse desaparece como que por milagre. Conta-se que Vicente Feola, treinador da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1958, teria representado na prancheta ante os jogadores seu plano para derrotar a União Soviética. Encerrada a preleção, Garrincha o interpelou: “seu Feola, o senhor já combinou com os russos?”
Toda irritação advém da vontade fracassada de controlar o meio em que se vive; do excesso de regras, planos e preleções para capturar a mutabilidade. Tantos são os dispositivos criados pela mente humana para paralisar o devir que a psiquê resta saturada. Na definição freudiana mal-estar é ausência de clareira. Ora, em uma clareira o vento circula randomicamente. Bem-estar é, portanto, a liberdade de se comportar como o vento na clareira, movendo-se ao sabor das circunstâncias lábeis.
Mas o esportista será bem sucedido no caminho do meio. De um lado, dotando-se da mais rigorosa disciplina física, técnica e tática à guisa de recursos para enfrentar o imprevisível. Isso inclui hodiernamente os processos meditativos de visualização e antecipação mental de situações de jogo possíveis. O enxadrista é tanto mais competente quanto mais vastas suas faculdades premonitórias, as quais nada mais são que prodigiosa memória operacional forjada na experiência repetida da tática frustrada ou vitoriosa. Por outro lado, deve unir à antecipação o improviso. Flexibilidades cognitivas, comportamentais e motoras compreendem as chaves que desatam os nós emergentes no presente do jogo.
Resiliência, ferocidade e criatividade completam o acervo de habilidades e competências necessárias ao esportista. É Nietzsche quem nos explica cada uma das três. Trata-se de uma tríade de transformações. Em primeiro lugar, o espírito deve se transformar em camelo, capaz de suportar o peso e o esforço da vida. Parte do desconforto da imprevisibilidade deriva da insegurança acerca das próprias forças e do próprio limiar de dor e estresse para suportar o desconhecido. Ora, o camelo simboliza a elevação deste limiar, a capacidade de suportar o que há de mais pesadíssimo, nos termos nietzscheanos; resiliência. Em seguida, o camelo deve se tornar leão, a fim de destruir os códigos morais heterônomos. O leão tem garras e presas capazes de abrir a clareira; ferocidade. Finalmente, o leão precisa dar lugar à criança, única capaz de gestar valores novos, no sentido mais literal do termo – isto é, valores ajustados às situações emergentes. Desprovida das regulamentações excessivas que subordinam o adulto, deste exigindo menos previdência que futurologia, a criança vive o presente de modo pleno, retirando-lhe o proveito devido.
De certo modo, Garrincha é a imagem da criança brincante. A criança que assim se fez por meio das três transformações do espírito propostas por Nietzsche. Como o camelo, não se desestabiliza com o peso do imprevisível. Abre clareira em meio à floresta dos protocolos de ação, à feição do leão. Em lugar de comportamentos padronizados, celebra a emergência do novo, com inventividade. Mais que espetáculo, Garrincha nos legou imagens de bem-estar. Não por acaso, é até hoje conhecido como “a alegria do povo”; apelido que se reveste de uma profundidade inesperada – e, por isso mesmo, viva.
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