Wecisley Ribeiro do Espirito Santo
Correlações fortes entre a prática esportiva e o desenvolvimento cognitivo estão bem estabelecidas. Há em especial uma profusão crescente de investigações interessadas nas repercussões da prática regular de esportes no âmbito das chamadas funções executivas. Inversamente, o dinamismo cognitivo constitui variável interveniente do desempenho esportivo. Os nexos entre esporte e inteligência se alicerçam, pois, em evidências muito sólidas. Pretende-se aqui esboçar possibilidades de explicar estas conexões, conjecturando formas de mapear a dinâmica de fertilização recíproca entre o que se passa dentro e fora das fronteiras da pele.
Principiemos pelo conhecimento mais básico de que dispomos a este respeito – a melhoria da respiração celular no tecido nervoso como parte dos benefícios metabólicos decorrentes da vida ativa. A atividade física desencadeia maior captação, transporte e consumo de oxigênio pelo aparelho cardiovascular – incrementando a vascularização das células neurais, a par dos demais sistemas orgânicos. Neste nível de análise, entretanto, não há distinção entre os benefícios cognitivos que resultam do hábito de caminhar, subir escadas, praticar ginástica ou jogar basquete. Claramente incorremos em erro grosseiro se estacionamos nesta etapa da reflexão.
Importa adentrar o domínio das funções executivas. Durante uma competição esportiva cada atleta precisa responder a ações imprevisíveis dos adversários. A decisão a ser tomada resulta da excitação e inibição simultâneas de comportamentos mutuamente excludentes. A escolha por uma dentre duas ou mais deliberações que competem entre si constitui um subproduto do chamado controle inibitório. As ações alternativas disponíveis não brotam, entretanto, espontaneamente da razão pura do competidor; elas resultam antes da experiência. As jogadas e movimentos ensaiados nos treinos ou vividas em disputas passadas, constituem o estoque de opções disponíveis para cada situação de jogo no presente. A capacidade de selecionar uma resposta para um problema técnico-tático atual compreende um uso particular da memória operacional. Trata-se não de uma memorização abstrata, descontextualizada e forçada – à imagem daquela que tantas vezes se testemunha nas salas de aula –, mas de um acervo eficaz e adaptativo, que emprega a experiência passada como meio de resolver problemas presentes. A imprevisibilidade que caracteriza a disputa esportiva exige que a tomada de decisão seja exercitada com flexibilidade cognitiva.
Entre a escala bioquímica, em que figura a vascularização cerebral, a respiração da célula nervosa e, por conseguinte, a otimização do metabolismo, de um lado, e a escala social, das interações responsivas e decisões em contextos imprevisíveis, de outro, há uma dinâmica intermediária propriamente comunicacional. Trata-se do modo como sistemas nervoso e muscular interagem entre si. Conforme alguns colegas da UERJ e da UFF demonstraram, a estimulação transcraniana por corrente elétrica contínua sobre o córtex motor primário de um atleta incrementa seu desempenho físico por cerca de 30 minutos. Ora, se uma elevação dos potenciais elétricos no cérebro pode repercutir nos músculos, sem dúvida por meio das vias neurais eferentes (do córtex aos demais sistemas orgânicos), somos autorizados a formular uma conjectura inversa. De modo que a contração muscular provavelmente converte a energia térmica liberada pelo movimento das fibras em potencial elétrico estimulador do sistema nervoso central por meio dos nervos aferentes (dos sistemas orgânicos ao córtex). Esta hipótese, somos forçados a admitir, carece ainda de verificação empírica. E, no entanto, fornece pistas para compreender o desenvolvimento recíproco da cognição e da motricidade humana.
É, contudo, o exercício de observação comparada entre escalas que nos oferece insights mais heurísticos para interpretar o fenômeno. Voltamos assim ao tema da recursividade da natureza, especialmente no que se refere a seu atributo conectivo e à estratégia populacional de adaptação biológica. Como vimos, a inteligência humana é tanto mais exuberante, quanto mais vastas as conexões que os neurônios sejam capazes de produzir, de modo distribuído por todo o corpo. Quando observamos organismos e populações, testemunhamos a mesma tática de manutenção da vida que consiste em apostar na seguridade que decorre da distribuição de tarefas por circuitos cibernéticos tão vastos quanto possíveis. Apenas para tomar o exemplo da escala planetária, a hipótese de Gaia, que consiste em ver a Terra como um organismo vivo, pressupõe que a saúde deste todo super-orgânico é uma função de sua biodiversidade, que consiste em um número astronômico de elos mantenedores da homeostase metabólica do orbe. Como sistema autopoiético – produtor e produto de si mesmo, conforme a definição de Maturana e Varela – o planeta confia sua sobrevivência e desenvolvimento a uma infinidade de componentes autopoiéticos que, a um só tempo, o constituem e vivem em autonomia relativa.
Ora, o que se passa no globo terrestre, de um lado, e no cérebro, de outro, não operaria também na escala das interações sociais? Populações, comunidades, equipes esportivas e famílias operam todas em recursividade com as leis coletivistas e associativistas que vigoram no nível astrofísico e no molecular, apenas para citar dimensões de contrastes extremos. Eis porque a coesão social com diferenciação interna, a solidariedade orgânica, a modularidade, o entrosamento, a sinergia tática e a ecologia de saberes, habilidades e competências compreendem as formas mais sofisticadas da vida. Eis porque o esporte é laboratório de observação e de treinamento para o bem viver, desde que informado pela intencionalidade educativa do fair play – que nada mais é que a aplicação tática da lei biológica das populações.
Muitas escolas de ensino médio no Brasil suspendem as aulas de Educação Física e as atividades esportivas às vésperas do vestibular, sob pretexto de concentrar o trabalho educacional nos estudos teóricos. Não poderia haver decisão mais dissonante com a lógica profunda da cognição que o esporte nos ajuda a compreender. A recursividade operante no cérebro e na vida social é a chave para entender como a cognição é lastreada em relações substantivas entre o organismo e seu ambiente. A sinergia entre os neurônios anela pela sinergia entre as pessoas, conforme vimos no fenômeno da incorporação neural dos objetos e sujeitos de interação. Sacrificar a vida social (e esportiva) em nome dos estudos é a forma mais eficiente de produzir um conhecimento abstrato, descontextualizado, de pouquíssima aplicabilidade prática.
No século XX viveu no Ceará um teólogo e clérigo especialista em línguas antigas, como o aramaico, o grego o egípcio. Chamava-se padre Damião. Sua biblioteca localizava-se nos fundos de uma favela. Ele dizia que a melhor forma de decifrar um escrito cuneiforme, de decodificação difícil, era suspender a investigação temporariamente para ajudar uma mãe de família pobre a conseguir o gás de cozinha ou o alimento para seus filhos. Tendo auxiliado na mitigação da dor de uma irmã e com ela produzido um vínculo empático, dizia padre Damião, as linguagens herméticas como que se lhe abriam os segredos semânticos e sintáticos, por ocasião da retomada dos estudos.
Temos hoje meios para interpretar com argumentos científicos a hipótese de Damião. Dada a recursividade fundamental da estratégia populacional da biologia, tudo se passa como se a recapitulação prática e sociológica da dinâmica conectiva do sistema nervoso conferisse a esta uma espécie de fundamento empírico ou experiencial. Em outras palavras, a conexão com a mãe de família de algum modo constitui um suporte heurístico em que se assentam as conexões neurais destinadas ao estudo linguístico do padre. Trata-se da memória operacional agindo em recursividade consigo própria – ou, em linguagem alegórica, de uma cobra que morde o próprio rabo para ao mesmo tempo sonegar o veneno a outrem e com este se entrelaçar à guisa de elos da grande corrente biológica de Gaia.
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