Cleber Dias
O recente post sobre “Ciência, religião e a questão que Haddad não respondeu” tratou do preconceito com que as classes intelectuais de esquerda lidam com a religiosidade popular, a partir da entrevista no programa Roda Viva, exibido na TV Cultura no dia 6 de julho e disponível agora no You Tube. De outro modo, uma questão que Haddad respondeu no mesmo programa também oferece ocasião para mais uma reflexão.
No terceiro bloco do programa, aos 59 minutos, o jornalista Flávio Costa perguntou a Haddad se o PT não teria se tornado prisioneiro da prisão de Lula. Mais precisamente, foi assim a pergunta do jornalista: “até quando o PT vai rodar em círculos com relação a essa questão do Lula”?
Na discussão que se seguiu, Haddad respondeu, em outras palavras, que a luta por justiça é mais importante do que vencer eleições. Na sequência, maculando a grandiosidade da sua própria resposta, justificou a obsessão do PT na defesa de Lula por meio de uma analogia com as relações familiares. Nas palavras de Haddad: “Eu entendo o coletivo do PT fazer o que faz [para defender o Lula], porque se fosse com a minha família eu faria a mesma coisa”.
Haddad é um intelectual sofisticado, dotado de um amplo e variado repertório. Se quisesse, poderia ter estabelecido metáforas com diferentes dimensões da realidade. Escolheu, no entanto, estabelecer uma analogia com a família. É uma escolha de certo modo reveladora.
Em 2016, durante as manifestações contrárias ao impeachment de Dilma Rousseff, uma constrangedora palavra de ordem ecoava da multidão: “o Lula é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”.
Na ocasião, Lula já era acossado por grampos telefônicos, vazamentos ilegais, conduções coercitivas e ameaças de prisão. Deixando de lado a natureza das acusações e dos procedimentos legais ou ilegais que pesavam sobre ele, saltava aos olhos a moralidade daquelas palavras de ordem, que reivindicavam a inocência de um acusado não por causa da sua inocência propriamente, mas apenas por ele ser um “amigo”.
Mas se o inocente acaso não fosse um “amigo”, haveria a mesma indignação?
Pouco menos de 3 anos depois, entre março e maio de 2019, um imbróglio jurídico tão controverso quanto aquele que envolve Lula atingiu também Michel Temer, o vice-presidente que conspirou pelo impeachment de Dilma, depois de seis anos de leal dedicação. Uma sucessão de ordens judiciais e habeas corpus mandaram prendê-lo e depois mandaram soltá-lo, antes de mandarem prendê-lo e novamente mandarem soltá-lo.
Diferente das reações típicas diante do caso de Lula, aqui não houve multidões nas ruas e nenhuma palavra de ordem ecoou. A injustiça, nesse caso, de fato parece doer apenas quando pesa sobre o ombro de “amigos”. Mais ainda, é preciso que esses “amigos” atualizem permanentemente seu estatuto, pois “amigos” do passado serão friamente esquecidos. Por essa régua, todos são amigos, embora uns sejam mais amigos do que outros.
Um partido político, todavia, não é uma família e os vínculos de solidariedade que cimentam as relações naquele âmbito são e devem ser diferentes dos afetos das relações familiares. O paralelo é de todo inadequado. No partido, na igreja, no trabalho, no sindicato ou na escola, no que a sociologia chama de instituições de socialização secundária, não há o mesmo tipo de vínculo afetivo que caracteriza a chamada socialização primária, que acontece, essa sim, no seio da família. É justamente a maior impessoalidade das relações o que marca a natureza dos vínculos nas instituições de socialização secundária.
Em 1958, com o propósito de descrever o modo de atuação política em Montegrano, uma cidade no sul da Itália, Edward Banfield elaborou o conceito de “familismo amoral”. O modo de atuação política daquela cidade era caracterizado por uma ética extraordinariamente restrita ao âmbito das relações sociais mais imediatas, especialmente a família. Em Montegrano, destrinchava Banfield, o único motivo para se preocupar ou se envolver com assuntos políticos era a expectativa de ganhos ou vantagens imediatas para si mesmo, para os familiares, para os parentes e para os amigos.
Com o tempo, esse conceito tem sido utilizado para explicar o modo de ação política que marca não apenas o sul da Itália, mas várias regiões, incluindo o Brasil e países da América Latina. Em toda a parte, a atuação política orientada por esse tipo de código de ética tem por consequência limitar os vínculos de solidariedade apenas ao imediato círculo de familiares ou “amigos”, bloqueando o florescimento de um sentido de pertencimento mais amplo e universal. Nesse sentido, a noção de que a política deve se orientar por uma lealdade cega e canina diante dos “amigos” é corrosiva para uma democracia.
José Socrátes, ex-premiê de Portugal, queixou-se por ter sido abandonado pelo seu partido diante das acusações de corrupção que puseram fim a seu governo em 2011. O ideal de José Socrátes, conforme ele revelara em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo, era ser tratado por seus correligionários do Partido Socialista em Portugal da mesma forma com que o PT sempre tratou Lula no Brasil. Segundo ele disse, “a diferença é que o PT se manteve unido ao lado do Lula. [Quanto a mim] a primeira coisa que o Partido Socialista fez foi afastar-se”.
Em Portugal, no entanto, apesar dos ressentimentos de José Sócrates, quatro anos depois da sua saída do governo, o Partido Socialista arquitetou uma coalização inesperada e politicamente criativa, conhecida desde então como “gerigonça”, formou maioria no Parlamento, reconquistou o comando do governo e implementou um programa de reformas capaz de tirar o país de uma profunda crise.
Enquanto isso, no Brasil, um candidato de extrema direita miseravelmente incapaz se elegeu Presidente, com algumas das principais lideranças da esquerda comprometidas, antes de tudo, com a mobilização permanente em favor da defesa do seu líder maior. Afastar-se de certos “amigos” ou parentes às vezes pode ser positivo. Que o diga o Partido Socialista português, o Partido dos Trabalhadores no Brasil ou mesmo a família Bolsonaro – assombrada por certos amigos e parentes mais que inconvenientes. Como dizia já o título do filme do italiano Mario Monicelli, parente é serpente.
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