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FILOSOFIAS POLÍTICAS DO NEGACIONISMO

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias

Cleber Dias


Na ágora das redes sociais, debateu-se recentemente, da maneira usualmente acalorada, a situação sanitária de São Lourenço, em Minas Gerais. Pequena cidade, com pouco mais de 40 mil habitantes, antes da pandemia a cidade costumava ser lembrada por suas fontes minerais. Agora, porém, fala-se muito do suposto sucesso da política municipal de saúde, levada a cabo pelo prefeito da cidade, o Dr. Walter José Lessa, médico.


Segundo dizem os entusiastas da medida, em razão dessa política de saúde ter adotado firmemente o “kit covid” e o chamado “tratamento precoce”, a cidade estaria conseguindo atravessar a tempestade sem muitos sobressaltos, diferente do que acontece em vários outros locais. Conforme apregoam os adeptos de tais medidas, a situação seria então a prova definitiva de que tais remédios de fato funcionam, quando apenas a má vontade ou a falta de escrúpulos da imprensa e de militantes políticos da esquerda tentam obstruir a disseminação dessas maravilhosas tecnologias farmacológicas que são a ivermectina e a cloroquina.


Segundo sugerem tais argumentos, se o mundo tivesse dado ouvidos ao prefeito de São Lourenço, que é médico, sempre enfatizam, as mortes de milhares e milhares de pessoas teriam sido evitadas. Se o mundo acaso se mostra cético, que ao menos o Brasil então abrace a solução. Se o Brasil também parecer pessimista e indisponível, que Minas Gerais cumpra sua gloriosa missão de mostrar com quantos remédios se trata uma pandemia.


Nesse registro, a solução para esse enorme e mundial problema causado por um vírus é não apenas conhecida, como bastante fácil e simples: cloroquina e ivermectina. Se há mortes, prejuízos e sofrimento, é apenas porque não dão ouvidos aos sábios conselhos do prefeito de São Lourenço. Todo o aparato científico mundial é pequeno diante da sapiência do Dr Walter José Lessa. Abundam relatos de pessoas que tomaram ou dizem ter tomado tais remédios, atribuindo a eles a recuperação de suas saúdes.


Dois níveis de discussão aparecem aqui. O primeiro, de ordem epistemológica. O segundo, de ordem propriamente política.


Dentre os mistérios que cercam essa doença viral que atinge o mundo, destaca-se a enorme variabilidade dos sintomas dos indivíduos que a contraem. Alguns são assintomáticos, enquanto outros adoecem gravemente e morrem. É uma escala que vai do zero ao mil. Além disso, mesmo entre muitos dos que manifestam algum sintoma, a recuperação pode vir naturalmente com o tempo. Nesse contexto, praticamente qualquer unguento pode aparecer como capaz de curar a doença, que afinal desaparece naturalmente em muitos casos. Pode ser ivermectina e cloroquina, mas também limão com mel, chá de boldo com agrião, missa cantada, banho de pipoca e reza braba.


O problema é que os adoradores fanáticos do “kit covid” e do “tratamento precoce” (há adoradores fanáticos para quase tudo) estabelecem equivalências entre correlações e causalidades. Assim, se em algum lugar qualquer disseram não ter adoecido ou ter se recuperado da doença em razão dos remédios do “kit covid” e adoção do “tratamento precoce”, deduz-se, então, erradamente, que a causa do milagre teria sido finalmente descoberta. Nesse caso, apontam para os remédios do “kit covid” e para o “tratamento precoce”, mas poderia ter sido qualquer outro emplasto. É a mentalidade mágica e não científica o que fundamenta essas visões.


Todavia, se rezadeiras forem nos hospitais e ninguém morrer naquele dia, não quer dizer que a presença de rezadeiras em hospitais evita mortes. Logo, não seria apropriado que prefeitos, governadores e o presidente abrissem editais para contratação de rezadeiras como medida preventiva e alopática para o tratamento de doenças, tanto quanto não é para o caso do “tratamento precoce”. A comprovação de causalidade entre variáveis é multifatorial e envolve considerações de ordem muito mais complexa. A existência de uma correlação não equivale a uma causalidade. Por má fé ou ignorância, é sempre possível mentir com estatísticas.


O segundo argumento dentre os defensores do “tratamento precoce” remete a um problema de filosofia política. Nesse contexto, frequentemente alega-se que pessoas que “acreditem” no tratamento precoce devem ter o direito de adotá-lo, mesmo que isso represente a transferência de recursos públicos escassos para medidas ineficazes. Essa abordagem reduz a medicina a uma questão de crença, o que é obviamente inadequado. Ao receber um sedativo potente, um paciente adormecerá, creia ou não nos efeitos da substância.


Além disso, essa visão dos defensores do tal “tratamento precoce” é orientada por um individualismo consumista extremo, onde hospitais e ambulatórios são encarados como restaurantes, onde o cliente entra, senta, recebe o cardápio e escolhe o que for da sua preferência. Se for cloroquina, que seja, mas e se for maconha?


A ironia é que essa visão é bastante parcial e seletiva. Muitos que a defendem são contrários a que indivíduos possam escolher fazer procedimentos médicos ou utilizar certas drogas para tratamentos como bem queiram. Veja-se as discussões sobre a legalização da maconha, do aborto ou da eutanásia.


Atravessamos e atravessaremos por algum tempo ainda uma situação deveras difícil, para a qual, infelizmente, não há soluções fáceis. Acreditar em mágicas é só uma maneira de buscar consolo e fugir da realidade, que é sempre dura e implacável. Enterrar a cabeça no chão, mais ou menos como um avestruz, certamente não mudará os contornos do momento.

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Fonte da Charge: Jornalistas Livres, de Brum Chargista.


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