Cleber Dias
O desemprego entre os que possuem diploma de doutorado no Brasil é quase o dobro da média do conjunto da população. Enquanto entre os que possuem doutorado há cerca de 25% de desempregados, entre o conjunto da população esse percentual é de 14%. Inscrever-se em um curso de doutorado é agora uma boa forma de aumentar as chances de estar desempregado. Para agravar, o número de trabalhadores qualificados que emigraram recentemente aumentou 40%.
Muitas vezes, busca-se explicação para esses problemas em eventuais associações com os desacertos do governo Bolsonaro, como explicita a chamada da reportagem da Folha de São Paulo que noticiou o crescimento da emigração de trabalhadores qualificados. “Sob o governo Bolsonaro”, enfatizou a reportagem, “mais trabalhadores tentam deixar o Brasil”.
No mesmo sentido, menciona-se também a interrupção da expansão dos investimentos em educação a partir de 2015, ainda durante o governo Dilma. Daí em diante, seguidos cortes orçamentários tiveram lugar nos gastos da área. Segundo dados do Siga Brasil, o portal da transparência do Senado Federal, entre 2015 e 2020 o orçamento destinado à educação diminuiu 23% (regredindo agora aos montantes de 2012, em valores atualizados pelo IPCA). Conforme certo diagnóstico corrente, essa restrição orçamentária tem impedido a realização de novas contratações para instituições de ensino superior, deprimindo, assim, a demanda por trabalho em um dos principais mercados para os que possuem diplomas de doutorado.
Todavia, para além de dificuldades circunstancias, tanto a alta taxa de desemprego dos que possuem diploma de doutorado, quanto a fuga de cérebros do Brasil, expressam problemas mais profundos. Substituir chefes de governo incapazes pode ajudar, mas nem sequer arranha a superfície do problema.
Há basicamente duas objeções principais ao argumento de que o desemprego e a fuga de cérebros devem-se principalmente aos cortes de gastos orçamentários na educação e a interrupção da expansão das instituições de ensino superior. A primeira objeção diz respeito ao caráter abstrato dessas observações, que não consideram o contexto econômico e orçamentário mais geral.
As políticas de cortes de verbas para a educação coincidem com um processo de estagnação econômica mais ampla. Entre 2015 e 2020, a economia brasileira registrou uma retração da ordem de 8%. Além disso, ao longo desse período, a porção do orçamento comprometida com despesas obrigatórias atingiu a marca de 94%, mesmo diante dos cortes realizados em várias áreas.
Obviamente, isto não diz tudo, pois a decisão de cortar ou ampliar recursos para qualquer setor é sempre uma escolha política. Nesse sentido, é digno de nota a desproporção entre os cortes orçamentários para a educação e as restrições macroeconômicas mais gerais. Ao longo do mesmo período, a arrecadação, afinal, se elevou em 18%, apesar da retração do PIB, que impôs perdas tributárias apenas nos anos de 2016 e 2019.
Fonte: Siga Brasil.
Toda escolha política, porém, realiza-se em ambientes onde limitações materiais não apenas existem, como são relevantes. Limitações impostas por opções políticas, portanto, incluindo àquelas que afetam o orçamento, devem ser seriamente levadas em conta. O mais importante aqui é o crescimento dos gastos obrigatórios, que consomem quase todo o orçamento público.
Além disso, no que é uma segunda objeção a explicações usuais ao desemprego e evasão de trabalhadores qualificados, a expansão das instituições públicas de ensino superior, embora expressiva nas últimas décadas, assim mesmo foi bem menor do que a expansão da oferta de vagas para estudantes de pós-graduação. Dito de outro modo, a criação de novos cursos de doutorado foi maior e mais acelerada do que a ampliação da demanda pelos egressos desses cursos pelas instituições de ensino superior.
Fonte: Censo da Educação Superior de 2019.
Por um lado, o número de professores de instituições públicas de ensino superior aumentou 13% entre 2009 e 2019, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2019. Por outro lado, o número de estudantes egressos anualmente dos cursos de doutorado no mesmo período cresceu 100%, quase oito vezes mais que o crescimento dos postos de trabalho gerados no contexto de expansão das instituições de ensino superior. Se considerarmos ainda um período de tempo ampliado, desde 1996, então o percentual de crescimento do número de doutores titulados é verdadeiramente extraordinário, na ordem de quase 400%, o que criou uma espécie de exército de reserva que agora eleva os índices de desemprego entre esse grupo. Diante dessa desproporção entre o número de titulação de novos doutores e o ritmo de criação de postos de trabalho no ensino superior, um gargalo fatalmente surgiria, tivessem ou não sido realizados cortes orçamentários na educação.
A alternativa frequentemente apontada, qual seja, acelerar a expansão das instituições de ensino superior nos mesmos patamares da oferta de cursos de doutorado, a fim de ampliar a demanda pela contratação de novos docentes, esbarra em diversas limitações. Em primeiro lugar, para que as instituições de ensino superior pudessem absorver o atual contingente de egressos dos cursos de doutorado, seria necessária uma expansão das instituições de ensino superior quatro vezes maior do que a que foi efetivamente registrada nas últimas décadas. Nesse caso, ao invés dos 386 mil professores do ensino superior que temos atualmente (em instituições públicas e privadas), precisaríamos contar cerca de 1,5 milhão.
Naturalmente, isto exige recursos, além de uma demanda qualificada. Pois supondo que as mesmas razões atuais entre número de alunos e professores fossem mantidas nas instituições de ensino superior (na média entre instituições públicas e privadas, 16 alunos por professor), isto implicaria também a necessidade de uma expansão correspondente das matrículas. Em outras palavras, mantendo-se o modo atual como se organizam as instituições de ensino superior, para que haja mais professores é preciso que haja também mais alunos. Uma alteração desse regime, onde mais professores pudesse prescindir de mais alunos, exigiria uma espécie de revolução na maneira como funcionam as instituições de ensino superior, que em muitos aspectos mais parecem escolas de ensino médio, enfatizando as atividades de ensino muito mais do que as atividades de pesquisa.
Nesse sentido, ao invés das atuais 8,6 milhões de matrículas, precisaríamos de 34 milhões, que é quase o mesmo número de crianças na educação fundamental e mais de quatro vezes o número de matrículas no ensino médio (que é cerca de 8 milhões)! Um cenário assim, que é apenas hipotético, dado que inteiramente irrealizável na prática, elevaria a proporção de matrículas no ensino superior do Brasil com relação ao conjunto da população a patamares muito superiores aos da Alemanha, do Japão ou do Reino Unido, países onde a renda per capita é muito maior que a do Brasil, no que viabiliza uma oferta de recursos para o financiamento direto ou para subsídios indiretos da educação superior também muito maior e mais abundante. Não por acaso, nunca antes na história desse país, nenhum partido político que tenha governado o Brasil foi capaz de tanto. Por justiça, deve-se dizer também que há poucas razões para acreditar que tenha existido algum dia condições para que uma realização dessa magnitude fosse possível.
Conforme chama atenção há muitos anos já Simon Schwartzman, a principal barreira para o desenvolvimento da educação superior no Brasil é o ensino médio. Embora o volume de matrículas no ensino médio seja grande ainda, o número de alunos egressos desses cursos em condições acadêmicas de atender exigências básicas para o ingresso no ensino superior é limitado.
Segundo os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), que avalia alunos com 15 anos de idade de 78 países, 50% dos brasileiros que participam das provas não atingem o que pode ser considerado um nível básico de proficiência em leitura. Em matemática e ciências esse desempenho é ainda pior. De maneira mais geral, conforme dados sobre analfabetismo funcional do Instituto Paulo Montenegro (Ibope) e da Ação Educativa (uma organização não-governamental), apenas 37% da população brasileira é considerada plenamente alfabetizada, conforme critérios adotados naquela pesquisa, sendo os outros 63% considerados apenas basicamente alfabetizados, analfabetos funcionais ou inteiramente analfabetos.
As instituições de ensino superior pouco podem fazer diante de um contingente tão grande desprovido de ferramentas educacionais tão elementares. Acaso instituições de ensino superior se voltassem para a mera alfabetização de estudantes funcionalmente analfabetos, já não se trataria de ensino superior propriamente dito.
Outra alternativa possível, embora menos cogitada, seria direcionar a ênfase na formação dos cursos de doutorado para o mercado produtivo, ao invés do ensino superior. Antes de tudo, uma medida desse tipo exigiria superar preconceitos históricos e barreiras ideológicas dos ambientes universitários brasileiros com relação às economias de mercado. Pois a relação entre o sistema produtivo e o sistema de pesquisa e ensino superior do Brasil é marcada não apenas por fragmentação, no que já seria negativo, mas também por antagonismo.
Mesmo que não houvesse tais antagonismos, porém, e aí vemos outra camada crucial da complexidade deste problema, o período de forte expansão da oferta de vagas para estudantes em cursos de pós-graduação coincide também com acelerada retração da produção industrial no país, que está entre a mais rápida e precoce do mundo. Desse modo, mesmo que os cursos de pós-graduação quisessem redirecionar a ênfase das suas formações acadêmicas em direção ao setor produtivo, essa alternativa não estaria disponível.
O país simplesmente não possui um setor produtivo com necessidades tecnológicas e tamanho suficientes para absorver mais de 20 mil novos doutores por ano. Ao invés de hubs biotecnológicos, farmacêuticos, químicos ou de engenharia de produção, temos restaurantes, padarias e salões de beleza. Aqui está um dos principais elementos para a explicação da fuga de cérebros e das elevadas taxas de desemprego entre os que possuem diploma de doutorado.
Novamente, tal como os cortes orçamentários na educação, a desindustrialização do Brasil também não começou nos governos conservadores de Temer e Bolsonaro. Chamar atenção para a longevidade histórica do problema não tem por objetivo responsabilizar apenas eventuais erros dos governos socialdemocratas de Dilma, Lula e FHC, assim como não tem o objetivo de atenuar culpas e omissões dos conservadores que lhes sucederam. Na verdade, é o contrário mesmo o que se deduz daí. De certo modo, todos esses governantes, apesar das diferenças que os separam, estão no mesmo barco no que diz respeito a incapacidade política de interromper a lenta, progressiva e angustiante degradação do tecido produtivo brasileiro, não obstante as tentativas nesse sentido.
Para além da responsabilização de indivíduos, portanto, temos que nos confrontar com um problema estrutural que afeta a sociedade brasileira: a dissociação das evoluções dos índices de escolarização e o desenvolvimento econômico do país. Entre 1960 e 2010, a escolaridade dos brasileiros aumentou 138%, enquanto a produtividade do trabalho, por seu turno, aumentou apenas 24% no mesmo período, conforme dados apresentados por Robert Barro e Jong-Wha Lee, professores das Universidades de Harvard e da Coreia (no livro Education Matters: global schooling gains from the 19th century to the 21st century).
Para dimensionar, na Coréia do Sul, no mesmo período, a escolaridade aumentou 113%, um pouco menos que a do Brasil. A produtividade do trabalho na Coreia, no entanto, aumentou 473%, quase 20 vezes mais que no Brasil! Fundamentalmente, é isto o que explica o acelerado processo de desenvolvimento social e econômico da Coréia, ao mesmo tempo em que ilumina um dos relevantes motivos do nosso persistente subdesenvolvimento.
Nenhum país pode desenvolver empresas que dependam de trabalho altamente qualificado sem disponibilidade suficiente dessa mão de obra. Em sentido contrário, porém, um país que disponha de pessoal altamente qualificado, mas não conte com empresas nos setores que demandem tais qualificações, igualmente não poderá realizar seu potencial produtivo, dado que o estoque de capital humano acumulado literalmente não terá onde ser empregado. É precisamente essa a encruzilhada que está expressa no drama dos elevados índices de desemprego e no aumento da fuga de cérebros brasileiros.
O investimento em educação é uma condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento de um país. Conforme as cruas palavras de Ha Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, que até quase ofendem o senso comum que romantiza o papel da educação para o desenvolvimento de um país, “o que realmente importa na determinação da prosperidade nacional não é o nível de instrução das pessoas e sim a capacidade da nação de organizar pessoas em empreendimentos com uma elevada produtividade” (no livro 23 coisas que não te contaram sobre o capitalismo).
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