Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Religião e esporte compreendem dois artefatos culturais em que operam os mesmos princípios antropológicos básicos. Em primeiro lugar, a associação, o empuxo gregário humano. Em seguida, a veiculação coletiva das emoções e a significação cultural dos afetos. Experimente-se sentar em meio a uma torcida apaixonada por seu time ou entre fiéis a determinada crença mística em êxtase, permanecendo-se impassível. Esta a melhor forma de ser notado à guisa de esquisitão.
Os sentimentos são objeto frequente de ritualizações, ocasiões em que sua expressão é obrigatória, nas palavras de Marcel Mauss. Em todos os tempos e lugares, os coletivos humanos codificaram modos de demonstrá-los publicamente. Trata-se, com efeito, de performances e dramatizações que confirmam a sincronia dos comportamentos individuais. De um lado, a expressão obrigatória dos sentimentos robustece os vínculos coletivos; de outro, e pela mesma razão, demonstra frente ao grupo, o pertencimento das pessoas que se comportam afetivamente conforme o código sancionado. Não é senão como decorrência destas formas rituais de preservar as relações que se observam verdadeiros campeonatos de excitação. Tacitamente, torcedores se rivalizam para ver a quem pertence a maior paixão pela bandeira que os reúne. Entre religiosos, não são menos implícitas e indizíveis as comparações de fervor. Vale à pena citar Mauss acerca de formas historicamente difundidas deste fenômeno alhures:
“O ‘grito para o morto’ é de uso generalizado no Queensland Est meridional. (...) Tem horas e tempos marcados com precisão. Todo agrupamento, onde haja um morto a chorar, uiva, chora, geme durante cerca de dez minutos ao levantar e ao por do Sol. Há mesmo entre estas tribos, quando vários grupos se encontram, um verdadeiro concurso de gritos e lágrimas, que pode estender-se a congregações numerosas, por ocasião de feiras, colheitas de nozes ou iniciações” (Mauss, 1979, p. 150, grifo meu, cf. no hiperlink acima o texto na íntegra).
Talvez não constitua acaso que as últimas décadas tenham registrado no Brasil, uma relação inversamente proporcional entre o declínio da presença de trabalhadores nas arquibancadas dos estádios de futebol – de todo modo convertidas em cadeiras individualizadas –, de um lado, e o aumento da adesão às religiões pentecostais, de outro. A natureza do êxtase praticado nestas denominações cristãs é homóloga à experiência emocional das torcidas de futebol, tal qual se expressou historicamente no país, marcada pela carnavalização. Em ambos os casos observa-se a tendência assinalada por Mauss à exteriorização e publicização agonística dos sentimentos. Não seria, por conseguinte, absurdo conjecturar que o pentecostalismo oferece, no Brasil contemporâneo, um substituto catártico compensatório para a gentrificação dos estádios de futebol. Vale lembrar a este respeito que a questão central em jogo na sociologia do esporte elaborada por Norbert Elias e Eric Dunning era a busca da excitação, conforme a tradução acertada da edição portuguesa. Trata-se, nas arquibancadas e nas igrejas pentecostais, de encontrar oportunidades para experimentar emoções que na vida cotidiana são obrigatoriamente controladas.
Ao longo do processo civilizador operante na biografia de todo ser humano, o controle social vai sendo internalizado sob a forma de autocontrole das emoções. O mal-estar que decorre desta tensão social sobre os afetos, como nos ensina Christian Dunker em sua tradução do conceito freudiano, é subjetivamente experimentado como a ausência de clareira. Não por acaso, os estádios de futebol e a morfologia das orações coletivas têm com frequência uma organização concêntrica; ambos oferecem a clareira na qual se mitiga o mal-estar da civilização, por meio do afrouxamento do controle inibitório que a vida social impõe aos que dela participam.
Em ambos os fenômenos cotejados, há uma verdade objetiva – que pode ser debatida com vistas ao aprofundamento de sua compreensão – e uma mistificação – que manda não discutir futebol e religião. Do primeiro ponto de vista, com efeito, cada um a seu modo concorre para edificar a problemática e instável questão da felicidade humana. Esporte é âmbito de desenvolvimento de aptidões, de recreação, ou recriação, conforme a acepção etimológica. Religião é esfera de especulação cosmológica e cosmogônica acerca da realidade não capturada pela ciência. Ambos, também por meio de dinâmicas específicas, dotam os seres humanos de maior resiliência, tolerância ao esforço, à dor, ao sofrimento, ao desconforto. Mircea Eliade, filósofo da religião, sugere que a imersão desmedida na história é condição problemática do humano. Dotado de habilidades especulativas e dedutivas que extrapolam muito sua capacidade de conhecer o mundo, o homo sapiens é também um homo mysticus. Ora, tanto o êxtase religioso quanto o esportivo oferecem linhas de fuga distintas, mas igualmente espiritualizadas, da historicidade. Como as artes, o esporte mergulha no mistério incomensurável da criatividade humana, em temporalidades e territorialidades protegidas da história. As religiões, a seu turno, perscrutam o mistério infinito do universo, para muito além da história. Talvez a criatividade seja mesmo a própria expressão do cosmos em nós.
Mas por verdades antropológicas que veiculem, esporte e religião são também objetos de mistificação. De pessoas reunidas com o fito de se proteger da história (no esporte), ou de extrapolá-la (na religião), se passa amiúde a instituições que outorgam a elas mesmas prerrogativas de privilégio histórico. Corpos sincronizados na mesma frequência de êxtase formam corporações. Das seitas espirituais ao espírito de seita, o passo é curto. Quando a realização existencial franqueada pelo coletivo engaja sentimentos enfáticos, o “nós” se faz sinédoque do “eu”, mitigando a insegurança, conforme a formulação de Michael Herzfeld. Brigas entre torcidas e sectarismo religioso nos oferecem dois exemplos concretos. Aqui pode-se retirar lições valiosas, de vez que esporte e religião compreendem apenas as expressões mais visíveis deste fetichismo do coletivo que assola segmentos sociais outros. De clubes recreativos a departamentos universitários, passando por seções sindicais, repartições públicas, empresas privadas e escolas; em todos os grupamentos humanos, o orgulho do social pode substituir as virtudes pessoais genuínas, como os dogmas fazem economia do pensamento.
Na comunidade forjada pela luta há, pois, verdade e mistificação. Não há dúvida, por exemplo, que a luta pela justiça constitui um valor. Mas defrontamos aqui uma luta que se trava, antes de tudo, no íntimo, contra os aspectos injustos da própria personalidade. A imposição violenta da justiça a outrem, com descuido da vigilância de si, é demagogia e carência de lógica; porquanto sem exemplo concreto, não se edifica a vida social. Mas quando a luta com o adversário se converte em prova de fidelidade incondicional à própria corporação, a exemplo das brigas entre torcidas e do sectarismo religioso, é que a mistificação já tomou conta da razão. Invariavelmente nestas ocasiões o etnocentrismo se instala.
Há mesmo poucas exceções conhecidas pela etnografia e pela historiografia. O chamado Perspectivismo ameríndio constitui uma delas. Povos herdeiros dos Tupinambá, como os Araweté do Xingu, sistematizaram uma filosofia cosmológica tão abrangente que realiza o prodígio de incluir todos os objetos e sujeitos conhecidos e desconhecidos (homens brancos, onças, capivaras, rios, florestas, montanhas e astros celestes) no círculo da humanidade. A cultura humana seria, nesse sentido, unificada, variando apenas a natureza dos corpos. Em toda parte, a mesma economia da predação. Os Araweté comem, de sua própria perspectiva, as capivaras. Mas estas concebem-se a si próprias como humanas, vendo a erva que ingerem à semelhança de capivaras. Onças, que comem Arawetés, veem-nos como capivaras, reservando para si o título de humanas. Homens brancos são amiúde... onças. O Xamã é aquele que opera a tradução entre naturezas distintas que expressam a mesma cultura. O perspectivismo ameríndio, marcado pelo multinaturalismo, sustenta um monoculturalismo que protege os Araweté do fetichismo do coletivo. De certo modo, a Umbanda também exibe a mesma antropofagia cultural, não sem assimetrias de poder, colonialismo e resistência.
O esporte nos dota de meios heurísticos para compreender a complexidade destes fenômenos sociais e para navegar por entre eles. A estrutura das competições esportivas é via de aperfeiçoamento técnico e tático porque provoca aberturas para novos aprendizados. Um time insulado em seus treinamentos e privado de confrontos com equipes equivalentes estagna seu desenvolvimento. Os praticantes de artes marciais conhecem bem o princípio segundo o qual o lutador se forma nas lutas oficias, onde será exigido em resiliência, plasticidade comportamental e flexibilidade cognitiva. O adversário tem uma caixa de ferramentas diferente daquela utilizada pelos companheiros de treino e só quem confronta a saída da própria casa pode efetuar empréstimos técnicos e táticos valiosos. Quando se persegue o aprimoramento esportivo, a competição é incontornável. E a religião? Bom, se o que se espera dela for apenas a proteção sectária do próprio ego, pode-se cerrar ad infinitum suas fronteiras. Mas se as motivações são de natureza filosófica, o diálogo ecumênico e o debate fraterno com múltiplas perspectivas teológicas são caminhos incontornáveis. “Examinai tudo e retende o que é bom” disse Paulo em sua carta aos Tessalonicenses. Futebol e religião se discutem, desde que com fair play.
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