Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
“A guerra nada mais é que a continuação da política por outros meios”. A célebre frase de Carl von Clausewitz poderia ser parafraseada, à luz dos pressupostos tantas vezes sistematizados neste portal, nos seguintes termos: a guerra nada mais é que a continuação da política quando destituída de fair play. Os valentões do planeta, conhecidos pelo bullying político e econômico que perpetram de modo ininterrupto contra as demais nações, estão sempre dispostos a trocar a diplomacia pelos mísseis. O recurso à violência na política, tal qual no esporte, pode levar a mil formas de submeter os adversários. E, no entanto, invariavelmente ele não assegura a eficácia na resolução dos conflitos de interesse. Como a eficácia esportiva encontra nas regras do jogo sua condição de possibilidade, assim também a eficiência política é franqueada por acordos multilaterais.
O valentão pode acreditar que sua tirania sobre os demais será perene, do mesmo modo que as superpotências militares alimentam a ficção de poder submeter países inimigos para sempre. Sob certas circunstâncias que a história cedo ou tarde providencia, contudo, a humildade de um peão pode derrubar a orgulhosa estatura de um rei. Insensato o forte que julga pisar o fraco, isento à terceira lei de Newton!
O fenômeno esportivo constitui uma forma de organização das rivalidades humanas fundamentada no equilíbrio da unidade contraditória entre ação e reação. O que o leitor encontra no que se segue são reflexões inspiradas na Antropologia do esporte acerca da guerra na Ucrânia; não o parecer de um especialista em relações internacionais. Há, contudo, uma dinâmica estrutural que manifesta homologias entre guerra, política e esporte. Razão pela qual pode haver algo de heurístico na comparação entre os três.
EUA e demais países da OTAN, Rússia e China; todos alimentam a quimera da onipotência. Eis a fonte de sua miopia frente à única forma possível de desenvolvimento humano e econômico – a saber, a negociação multilateral, a renúncia ao uso da força e o estabelecimento de regras democraticamente firmadas e universalmente válidas. Pode-se imaginar uma partida de futebol em que uma das equipes se veja proibida de cruzar o meio da quadra? Ou um jogo de basquete em que seja concedido apenas a um dos times recuar a bola ao próprio campo de defesa? Estas indagações são ridículas mesmo referidas ao esporte, em que a vida ou a morte de pessoas não estão em jogo. Entretanto, a OTAN julgou poder insular a Rússia, expandindo-se em claro cerco – do que o ingresso da Ucrânia representaria mesmo nova frente de assédio ocidental.
Seria cabível um jogo em que uma das equipes tivesse livre acesso ao placar, retrocedendo a contagem de pontos contrários? A Rússia, não obstante, se outorgou o direito de retomar a Criméia concedida à Ucrânia, em 1954. Os que argumentam ser natural que os países detentores de meios bélicos os utilizem para fazer valer seus interesses devem admitir pelo mesmo fato que a guerra é então inevitável e não deveriam, por conseguinte, se escandalizar quando ela é deflagrada.
No esporte, aqueles que passam o jogo ameaçando os adversários com agressões verbais e teatralizações vexatórias são penalizados com falta técnica. A OTAN, liderada pelos EUA, de um lado, e a Rússia, a partir da Criméia, de outro, executam seus testes militares no Mar Negro, como o fariam dois galos de briga. Estes rituais públicos de ameaça nos levam novamente à lei de ação e ração, consagrada pela mecânica newtoniana. É definitivamente impossível que um bloco da divisão dualista do globo se movimente livre da resposta de seu rival. EUA/OTAN, China/Rússia encontram-se indissoluvelmente vinculados pela animosidade que os divide. Foi mérito de Georg Simmel reconhecer que o conflito não constitui ausência de relação. Só a indiferença pode seguir impassível frente ao comportamento alheio. O conflito é sempre responsivo; o que faz com que os dois blocos de potências bélicas do planeta engendrem um metabolismo contraditório, mas ainda assim unitário.
Tomemos um exemplo aparentemente afastado do conflito em foco para ver que rapidamente emergem conexões metabólicas profundas, a exigir diplomacia. Desde sua criação, em 1948, o estado de Israel mantém relações estratégicas de aliança com os EUA – tendo destes recebido a maior soma de assistência externa cumulativa, perfazendo cerca de 150 bilhões de dólares. Desde o princípio, a intolerância religiosa marcou as relações entre Israel e Palestina – embora isso não signifique, bem entendido, qualquer animosidade de natureza entre judeus e mulçumanos. Os conflitos entre Israel e Síria, a seu turno, aproximam israelenses e russos; de vez que ambos se opõem às milícias apoiadas pelo Iran, dentre as quais o Hezbollah. Como parte dos fundos de origem estadunidense é empregada na defesa da fronteira sírio-israelense contra grupos para-militares sob comando iraniano, Israel se constitui assim em delicado e contraditório elo entre interesses dos EUA e da Rússia. O caráter equívoco de uma decisão se revela na necessidade de revisá-la ou escamoteá-la. As decisões erradas do governo israelense o forçam doravante à revisão ou, o que é mais provável, ao escamoteamento – e tanto mais por conta das estreitas relações étnicas que nutre com a Ucrânia.
O exemplo ilustra a impossibilidade lógica de produção de qualquer gênero de desenvolvimento pelo recurso à guerra. A interdependência planetária é profunda demais para que qualquer nação possa se lançar em um conflito, sem esbarrar em contradições comprometedoras. Este o mesmo erro em que incorre o discurso autoritário, preconceituoso e antipolítico de Volodymyr Zelensky e de seu séquito. Sentimentos e discursos públicos separatistas compreendem um entrave ao progresso humano. Logramos os meios tecnológicos para o exercício global do direito à livre circulação e ao livre comércio – este que, conquanto criticado pela esquerda e vilipendiado pela direita, irá nos salvar de uma guerra mundial – e permanecemos primitivos em nossas divisões tribais. Não se pode esperar outra coisa além de guerra quando se justifica com um erro (os testes militares russos no Mar Negro) a realização de outro (o estrangulamento da navegabilidade russa, especialmente dramático por ocasião do inverno, quando o Mar Glacial Ártico congela).
O primarismo de nossas “formas primitivo-contemporâneas de classificação”, em livre paráfrase de Durkheim e Mauss, se expressa com toda força na expansão da OTAM em pleno século XXI – motivada por uma mentalidade que poderíamos denominar a loucura do anacronismo. Ela demonstra o caráter atávico do processo de produção e dissolução das identidades nacionais e civilizacionais. Os conflitos econômicos e políticos que caracterizaram a Guerra Fria podem ter assim encerrado – como ilustra a interdependência comercial entre Rússia e Europa. (O que oferece também uma demonstração cabal da impossibilidade lógica de uma guerra de amplas proporções, embora a insensatez possa chegar a desmedidas inacreditáveis, como nos lembra Barbara Tuchman.) E, no entanto, a humanidade não foi capaz, ao cabo de mais de trinta anos desde o fim do bloco socialista, de desmontar o aparato institucional forjado pelo conflito que se expressa na OTAN.
O surpreendente intento ucraniano de ingressar na OTAN é explicado pelo mesmo fenômeno de durabilidade da estrutura de segmentação e da persistência das classificações sociais que lhe corresponde. A ex-União Sociética foi capaz de preservar uma parcela do vasto território correspondente ao Império Russo. A animosidade entre os povos da Eurásia é milenar e em nada difere de fenômenos homólogos registrados pelos primeiros observadores do continente africano ou americano. Com efeito, em todos os recantos do planeta, os colonizadores europeus souberam explorar os conflitos locais conforme a conhecida tática de dividir para dominar. Muitos massacres do século XX decorreram destes crimes coloniais – do que o genocídio em Ruanda talvez seja o mais conhecido.
O que hoje se testemunha na Ucrânia é apenas mais um capítulo desta história que se repete ora como tragédia, ora como farsa. O Império Russo primeiro, a União Soviética, em seguida, lograram preservar por muito tempo uma unidade forçada entre múltiplos povos eslavos caracterizados pela mesma tendência regular à competitividade, registrada noutros continentes. Diferente das rivalidades de alhures, no entanto, a eslava não encontrou nesse decurso possibilidade de expressão da força centrífuga que produzia, constrangida pelo poder centrípeto da Rússia. Brasil e Argentina, Rio de Janeiro e São Paulo, Sul e Norte dos EUA, Michigan e Chicago, encontraram ocasião histórica para afirmar suas identidades específicas, relegando suas rivalidades segmentares à esfera do esporte, por exemplo. Os grupos étnicos que constituíram a União Soviética não tiveram a mesma sorte, assim como aqueles forçados a coexistir em um mesmo estado arbitrariamente traçado na partilha da África.
Nos últimos dias dois intelectuais de alta envergadura formularam questões para as quais disseram não haver resposta. O advogado Luiz Carlos Rocha disse não encontrar explicação para a motivação ucraniana de entrar na OTAN. A seu turno, o ex-ministro das relações exteriores Celso Amorin argumentou ser incompreensível a dissolução da União Soviética, referindo-se com isso antes à unidade política que ao regime econômico: “Eu poderia imaginar o fim do comunismo, poderia imaginar uma liberalização progressiva, mas jamais o fim da União Soviética”. Ambas as indagações não podem ser respondidas sem o recurso ao conceito antropológico de segmentaridade. Quando o empuxo à segmentação social que este termo descreve não encontra formas de expressão simbólica, objetivadas em emblemas políticos e esportivos, o conflito violento e a dissolução explosiva é inevitável. A Perestroika foi o resultado das fortíssimas pressões centrífugas acumuladas desde o Império Russo. Eis também aqui o motivo pelo qual a Ucrânia quis ingressar na OTAN – o fortalecimento de sua identidade em oposição à Rússia, tal qual se passou com as nações ex-soviéticas Estônia, Letônia e Lituânia, conforme se observa no mapa publicado pela BBC, aqui reproduzido.
A estrutura esportiva é, sem dúvida, uma sublimação do empuxo humano à segmentação que dá lugar aos paroxismos da guerra. Nela a oposição entre segmentos sociais, reunidos em times e em torcidas, assume um caráter teatralizado, viabilizando uma experiência afetiva agonística sem, contudo, comprometer a vida dos adversários. Quando torcidas abandonam as coreografias e músicas para se digladiarem, por vezes até a morte, o que está em jogo é a perda deste anglicismo dotado de leveza – o fair play. Na ausência de afinidades internas robustas – posto que uma camisa do Flamengo ou do Botafogo não institui uma diferença de natureza entre torcedores e tão pouco gera automaticamente identificações internas – parte das torcidas se submetem a provas bárbaras de fidelidade ao próprio clã, batendo-se violentamente contra outro. Homologamente um substrato profundo da guerra, subjacente a interesses políticos e econômicos, é a bandeira étnica. Ser judeu ou mulçumano, ucraniano ou russo, estadunidense ou chinês, não significa diferença de natureza alguma entre as pessoas. Quando as identificações sólidas são escassas, a coesão étnica se constitui em oposição aos outros, mesmo aqueles situados no interior de um mesmo estado nacional.
O Terror, isto é, a perseguição aos dissidentes da política interna, é irmão da guerra como política externa. Nazismo, fascismo, ditaduras comunistas constituem, à direita e à esquerda, a expressão máxima da perda do fair play, do que não pode decorrer outra consequência senão a guerra; Mao Tsé-Tung matou 77 milhões de opositores, Stálin, 43 milhões, Hitler, 20 milhões, e as vidas subtraídas pelo imperialismo estadunidense são incomensuráveis. Os analistas dos fatos objetivos podem argumentar que atribuir um fundamento ilógico à guerra e um estatuto civilizatório incontornável à diplomacia constitui uma utopia. Entretanto, quando o realismo se faz naturalismo, a bestialidade da guerra é a consequência inelutável do grilhão dos dados empíricos. Os dilemas econômicos que vinculam Europa e Rússia evidenciam que talvez seja hora de substituir o pragmatismo niilista pela utopia profética da paz.
コメント