Cleber Dias
A ocupação de Minas Gerais acelerou-se tremendamente depois da descoberta de ouro na região. O principal centro dessa exploração foi Vila Rica – depois chamada Ouro Preto. Nessa época, a cidade tornou-se a mais populosa não apenas do Brasil, senão de todo o Império Português. No final do século 18, Vila Rica tinha quase 80 mil habitantes, mais que o dobro da população contada no Rio de Janeiro (39 mil), mais do que a população de Salvador (46 mil) e muito mais do que a população de Nova York (33 mil), que era a maior e mais populosa cidade dos Estados Unidos desde essa época. A quantidade de ouro enviado de Minas Gerais em uma única remessa no ano de 1732 foi maior do que a soma da produção de todo um ano de mineração desse metal em todo o continente europeu e africano juntos! Com efeito, Ouro Preto era como o coração, os braços e o pulmão não apenas do Império Português, senão de toda a Europa. O milagre econômico europeu dos séculos 18 e 19, com suas impressionantes ferrovias e máquinas a vapor, foi em grande medida financiado pelo ouro extraído das montanhas de Minas Gerais, por meio do aviltante trabalho escravo realizado por negros, condenados, contudo, à miséria e à uma vida degradante.
Por volta de meados do século 18, porém, a quantidade de extração desse metal precioso em Minas Gerais diminuiu crescentemente. A partir de documentos legados sobretudo pela administração imperial portuguesa, para quem o ouro era a coisa mais importante em Minas Gerais, consolidou-se uma imagem de decadência da região. Do ponto de vista da administração imperial portuguesa, na medida em que havia menos ouro, havia também menos interesse, menos vida e menos tudo. Só o ouro lhes interessava.
Apenas reforçando o mesmo conjunto de representações, ao longo da segunda metade do século 19, iniciaram-se conjecturas a respeito da necessidade de edificar-se outra capital para Minas Gerais, justamente por causa do atraso e da decadência de Ouro Preto. A primeira proposta nesse sentido teria ocorrido em 1867, por iniciativa de um tal Agostinho Paraíso, que era padre. Pouco depois da proclamação da República (1889), quando a antiga cidade de Ouro Preto foi rebatizada como Ouro Preto, transferiu-se finalmente a capital de Minas Gerais para Belo Horizonte, cidade especialmente construída com o propósito de sediar uma nova capital. Tudo isso consolidou essa imagem histórica, cristalizando a representação de Ouro Preto como lugar do passado, no que é até hoje explorado pelo turismo local.
Todavia, por volta das décadas de 1970 e 1980, uma série de pesquisas começou a questionar essas imagens. Baseados em diversificados documentos e edificados em interpretações sofisticadas, trabalhos como os de Roberto Martins, Robert Slenes e Douglas Libby exibiram uma vida social em Minas Gerais no período posterior ao processo de decadência da mineração de ouro muito mais exuberante do que se supunha até ali. Conforme revelaram os trabalhos desses autores, Minas Gerais era a província mais populosa e também a que mais adquiria escravos no Brasil do século 19. Considerando que o tráfico humano era um dos principais negócios nessa época, como uma região supostamente decadente poderia dispor de capital para tanto? Uma importante incoerência histórica foi se revelando por meio dessas pesquisas.
Subvertendo o consenso estabelecido até então, esses trabalhos começaram, pois, a firmar o entendimento de que, na verdade, não houvera decadência depois do declínio da exploração de ouro em Minas Gerais. Ao invés disso, o que houvera foi uma transformação da estrutura produtiva e social de Minas Gerais a partir dos fins do século 18 e ao longo de todo o século 19. A mineração deu lugar a outras atividades, especialmente à agricultura, que Douglas Libby chamou de "agricultura mercantil de subsistência".
Analisando, especificamente, a vida social e cultural de Ouro Preto na década de 1880, a recente dissertação de Verônica Toledo Ferreira de Carvalho ajuda a jogar alguma luz sobre o assunto. Desde os meados do século 18, em conformidade às ideias iluministas que se difundiam na época, o lazer era considerando pelas elites luso-brasileiras um importante índice de progresso de uma cidade e de um país. Não por acaso, uma das primeiras medidas de Dom Luís de Vasconcelos e Souza ao chegar ao Rio de Janeiro em 1779, quando foi nomeado vice-rei, foi ordenar a construção de um passeio público na cidade. Dom Luís de Vasconcelos e Souza era um intelectual português fortemente identificado com o iluminismo francês – no que em Portugal rendeu a toda uma geração a irônica classificação de “intelectuais estrangeirados” – para quem os ideais de progresso e civilização eram pedra angular de uma vida social. Nesse contexto, a difusão de novos lazeres era parte importantíssima do processo social de evolução e progresso dos costumes. Também não por acaso, daí em diante, elites locais de praticamente todas as cidades do Brasil empenharam-se tanto quanto podiam em construir teatros, organizar bibliotecas, arborizar praças ou promover espetáculos musicais.
Em Ouro Preto, símbolos desse processo de modernização estiveram na construção de uma casa de ópera, na formação de bibliotecas, na editoração de jornais, na criação de escolas superiores (primeiro de farmácia e depois de mineração), na organização de orquestras e bandas de música, na criação de grêmios teatrais, na elaboração de projetos para edificação de parques públicos, assim como na inauguração de uma estação telegráfica, na adoção de Iluminação pública movida por combustores e depois por energia elétrica, e ainda na inauguração de uma linha ferroviária.
Mais detidamente, a dissertação de Verônica aproxima a lente da dinâmica de promoção de espetáculos públicos em Ouro Preto ao longo da década de 1880, tentando mostrar que a oferta de oportunidades de consumo cultural desse tipo era abundante na cidade naquele período, justamente quando se inicia, ou melhor, se intensifica uma retórica a respeito de um inescapável atraso de Ouro Preto. Segundo revela a pesquisa de Verônica, entre 1882 e 1888, mais de 37 dramas ou comédias foram encenadas no teatro da cidade – classificado como pequeno e acanhado por viajantes europeus que visitaram à cidade em algum momento do século 19. Uma cidade com tal vivacidade cultural poderia ser classificada como decadente ou atrasada para os padrões brasileiros dos fins do século 19? Embora não seja exatamente este os objetivos da dissertação de Verônica, deduz-se do trabalha dela que não.
O assunto pode ser controverso e eu mesmo guardo certo cepticismo a respeito de algumas conclusões de Verônica, embora tenha sido o orientador dessa bela dissertação e dessa talentosa estudante. Por volta de 1890, Ouro Preto era uma cidade com cerca de 60 mil habitantes. Nessa época, a cidade do Rio de Janeiro contava mais de meio milhão de habitantes, enquanto Salvador contava quase 200 mil e Recife pouco mais de 100 mil. Salvador e Recife eram as duas principais e maiores capitais de uma região que vivia uma longa estagnação, com a debacle do açúcar e toda a crise que a situação gerava, enquanto o Rio de Janeiro e logo São Paulo eram as capitais da nova espinha dorsal da economia brasileira, que se deslocara para o Sudeste ao longo do século 19 graças à emergência da cafeicultura.
Já pelo tamanho do mercado consumidor, é difícil imaginar que Ouro Preto pudesse ser vista como uma cidade com uma oferta cultural tão rica e abundante quanto outras capitais brasileiras importantes da época – Salvador e Recife incluídos. Mesmo em Minas Gerais, cidades como Juiz de Fora, que não era capital mas funcionava como o centro econômico da região no período, possivelmente tinham uma vida social e cultural mais intensa do que Ouro Preto, o que justificava, aos olhos dos contemporâneos, o sentimento de atraso que parecia afetar Ouro Preto. Possivelmente agravando tais sentimentos, Ouro Preto tinha um território extenso, com mais de uma dezena de distritos, por onde se dissipava sua população. Naquilo que reconhecemos propriamente como a cidade de Ouro Preto, isto é, as freguesias de Pilar e Antônio Dias, havia apenas 17 mil almas.
Todavia, como orientador de teses e dissertações, nunca alimentei a pretensão de ter discípulos ou seguidores. Como professor, tenho apenas ex-alunos, que foram, são e sempre serão livres para edificar suas próprias conclusões, certas ou erradas, convergentes ou divergentes das minhas próprias. Na verdade, mais que isso, tanto quanto sou capaz, tento mesmo encorajar os estudantes a uma postura intelectualmente ousada e original, que esteja, portanto, disposta ao erro e à toda sorte de contestações, a começar pelas minhas, que serão as mais implacáveis possíveis. Antes a ousadia que a covardia, o erro que a repetição monótona do que já de antemão se supõe saber.
Covardia, porém, não é algo que se possa atribuir a esta dissertação, tampouco a sua autora. Os trabalhos refletem involuntariamente parte da personalidade de seus autores. Sem nunca ter entrado na hemeroteca de uma biblioteca, Verônica abraçou a sugestão – temerária talvez – de uma pesquisa histórica analisando jornais do século 19. Se você nunca viu a diagramação, a tipografia e a ortografia de um jornal do século 19, faça essa experiência para ter uma ideia do laborioso desafio que isso pode representar. Sem nunca ter visitado Ouro Preto, Verônica mergulhou nos documentos e na bibliografia sobre a história da cidade e dois anos depois emergiu dessa maçaroca de papéis com uma dissertação bastante digna. Tendo ainda um orientador “pouco ortodoxo” – que é uma maneira simpática de dizer “talvez um pouco omisso” – Verônica tomou as próprias decisões a respeito do próprio trabalho, no que apenas lhe engrandece. Tomar decisões a respeito do próprio trabalho, afinal, é um aspecto fundamental do processo de formação e amadurecimento de um pesquisador.
Sabendo que a ex-aluna foi aprovada para o curso de doutorado, ao mesmo tempo em que terminava a sua dissertação, com um interessante projeto sobre representações de esporte e lazer em filmes da Alemanha e da União Soviética entre as décadas de 1910 e 1930, o que apenas reforça sua enorme capacidade, só posso desejar-lhe sorte na nova fase. Voe alto. Voe longe. Ao Brasil falta ainda mais homens e mulheres com mais atrevimento intelectual.
Em breve, a íntegra da dissertação de Verônica estará disponível no site do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer, sob o título “Ouro Preto, Sinfonia da Metrópole: 1882-1889”, que considero inadequado, embora deva admitir que é bastante bonito.
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