O desenvolvimento do Brasil não será impedido pela taxação de livros. Na verdade, isenção de impostos é parte do problema que dificulta o desenvolvimento do país.
Cleber Dias
A proposta do governo de extinguir a isenção de impostos sobre livros é positiva e deve ser apoiada.
São apenas dois os grupos que se interessam mais diretamente pelo assunto e que têm se manifestado publicamente a respeito: os consumidores de livros e os empresários da cadeia produtiva do livro, especialmente proprietários de editoras e livrarias.
O grupo dos empresários afirma que o setor opera com margens de lucro já muito pequenas, de modo que o novo imposto teria que ser repassado para o preço dos livros. Estimativas apontam que livros poderiam ficar 15% mais caros caso a isenção de impostos seja extinta. Nesse contexto, receia-se que a elevação de preços poderia diminuir o número de compradores, agravando a crise do setor.
Já o grupo dos consumidores apenas não deseja pagar mais caro pelos livros, julgando inadequado que tornem seus hábitos de compra mais dispendiosos.
Uma vez que os interesses de consumidores e empresários coincidiram, formou-se entre esses grupos um consórcio, que os une agora na luta contra o fim dessa isenção tributária. O principal argumento que cimenta essa união é o de que livros são produtos muito importantes, não apenas para aqueles que os vendem ou os compram, mas para o progresso e desenvolvimento geral de toda nação.
Tais argumentos não me convencem. Mais que isso, julgo-os socialmente injustos, politicamente danosos e economicamente ineficazes. No meu ponto de vista, o pleito correto não é a defesa da manutenção da isenção de impostos para livros, mas sim o fim de várias modalidades de isenção tributária, incluindo a que beneficia os livros.
O assunto deve ser abordado em termos mais estruturais e não apenas conjunturais.
Pesquisas recentes indicam que 50% da população maior de 5 anos pode ser classificada como leitora, isto é, leu um livro inteiro ou em partes nos últimos três meses. Quer dizer então que os outros 50% da população não seriam leitores.
De maneira mais grave, pesquisa de 2011 concluiu que 74% da população brasileira adulta não estava plenamente alfabetizada! Cerca de 50% dos brasileiros não terminaram o ensino fundamental, segundo dados do IBGE. A escolaridade é um fator determinante nas habilidades que capacitam para a leitura, para não falar das que qualificam para empregos com boas remunerações e que podem oferecer rendimentos suficientes para a aquisição de livros e outros bens de luxo (mesmo com impostos). Quanto maior a escolaridade e maior a renda, maior também a quantidade de livros lidos. Isenção de impostos de livros não é capaz de reverter esse quadro.
Além dessas questões educacionais, sabemos ainda que cerca de ¼ da população brasileira vive abaixo da linha da miséria, isto é, possuem uma renda domiciliar por pessoa inferior a 406 reais por mês, de acordo com os critérios adotados pelo Banco Mundial e conforme divulgado por pesquisa recente da Síntese de Indicadores Sociais.
Diante de todas essas circunstâncias materiais e subjetivas, quem pode comprar livros no Brasil e a quem medidas de isenção de impostos desses produtos realmente beneficia?
Atualmente, cerca de 62% das escolas públicas municipais de ensino fundamental, que atendem 68% das matrículas e representam quase 70% das escolas desse nível de ensino, não têm biblioteca, segundo dados do Censo Escolar de 2017. Considere-se que a estatística oficial adota um conceito abrangente, falando de bibliotecas ou “salas de leitura”, que na prática podem ser cômodos embolorados, dotados de uma mesa, uma cadeira e uma pequena pilha de livros didáticos.
É curioso que na discussão sobre os impostos dos livros quase ninguém mencione as bibliotecas públicas ou as “salas de leitura” das escolas. Uma transformação da infraestrutura das escolas públicas brasileiras, onde 59% desses estabelecimentos não tem sequer ligação com redes de esgoto, exigiria mais investimentos.
No Brasil, cada aluno do primeiro ciclo do ensino fundamental custa cerca de 11 mil reais por ano. É um valor um pouco maior do que os da Argentina, da Colômbia ou do México, mas muitas vezes menor do que os da Alemanha, da França ou de Portugal. Este não é um fato novo. A educação fundamental no Brasil é histórica e cronicamente subfinanciada, especialmente se considerarmos os gastos por aluno.
A precariedade das nossas escolas públicas, portanto, não é obra do acaso, do destino ou da imaginada incompetência dos serviços públicos. É o resultado de interesses capazes de urdir uma estrutura política perversa, com a qual os defensores da isenção de impostos de livros acabam concordando, seja por maldade, seja por inocência.
Mais investimentos, no entanto, dependem de mais recursos. Atualmente, 94% do orçamento público é comprometido com gastos e despesas obrigatórias, de modo que a margem disponível para investimento novo é pequena. Soluções para o problema que excluam contração de novas dívidas, passam pelo impopular corte de gastos ou pelo aumento da base tributária, seja através da criação de novos impostos, do aumento da alíquota dos impostos que já existem ou da suspenção das renúncias fiscais.
Diante de tamanha restrição orçamentária, surpreende que 21% de toda a arrecadação do governo (ou 331 bilhões de reais) destine-se a alguma forma de renúncia fiscal – chamadas oficialmente de “gastos tributários”. A lista de setores contemplados é grande, ocupando 82 páginas e incluindo desde importação de equipamentos esportivos, até isenção de tributos de pensões, aposentadorias, despesas médicas ou com educação particular, além, claro, dos livros.
No montante de “gastos tributários”, o custo representado pelas vantagens fiscais oferecidas aos livros é relativamente pequeno: 1 bilhão e 3 milhões de reais, representando 0,39% do total de “gastos tributários”.
Independente dos montantes, porém, o fundamento geral dessas e de várias outras vantagens tributárias é sempre o mesmo. Todos os setores contemplados alegam que produzem algo socialmente importante e que por isso mesmo são dignos de tais incentivos. Isso inclui não apenas livros, mas motocicletas, troféus, medalhas, placas, estatuetas, distintivos, flâmulas, bandeiras ou componentes destinados ao reparo de aeronaves, entre inúmeros outros itens.
A reinvindicação da manutenção da isenção de impostos para os livros, apesar das aparentes boas intenções, encobre, na verdade, um conjunto de interesses bastante mesquinhos, tanto da parte dos empresários, quanto da parte dos consumidores. Esses grupos falam em nome do Brasil, mas buscam apenas o que lhes convém.
Estudo realizado por um grupo de pesquisadores do IPEA mostrou já que os efeitos de diminuição das desigualdades promovidos por gastos sociais no Brasil são anulados pela natureza do sistema tributário, destacando-se os tais “gastos tributários”. Ou seja, a desigualdade no Brasil é como um objeto puxado por duas locomotivas que correm em direções opostas, anulando-se reciprocamente.
De um lado, o Estado atua para atenuar desigualdades através de gastos sociais. De outro, o Estado atua também para concentrar rendas e reforçar desigualdades através de transferências de recursos públicos para os mais ricos realizadas por meio de gastos tributários. O resultado é a manutenção das coisas precisamente como estão. Os mecanismos de isenções do atual sistema de tributação, do qual a economia do livro faz parte com entusiasmo, é um elemento fundamental dessa estrutura de imobilismo, injustiça e estagnação.
A convicção de que isenção de taxas e impostos sobre livros é um recurso ao desenvolvimento é apenas um expediente retórico mais ou menos hipócrita para que empresários e consumidores, geralmente das elites ou das classes médias, paguem menos impostos.
O negócio de comprar e vender livros diz respeito apenas a compradores e vendedores. Apelar para a educação do povo, que segue bastante distante dos livros, é intelectualmente desonesto. Alguém já viu uma criança que faz malabarismos nas ruas lendo um livro enquanto espera o próximo sinal vermelho? Isenção fiscal de nenhum tamanho fará um livro chegar nas mãos dessas crianças.
Os que gostam de livros devem mesmo abrir os bolsos e pagar pelo produto que dizem venerar, ao invés de tentarem transferir parte desses custos para o conjunto da sociedade, boa parte da qual inteiramente privada de qualquer possibilidade de acessar ou consumir coisas como livros. Mais do que discursos bonitos nas redes sociais, pagar por um produto também é uma forma de atribuição de valor.
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