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LAZER E MUSEUS NA DISSERTAÇÃO DE LUIZA MACEDO

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias


Cleber Dias

A dissertação “Lazer e Aprendizagem: interseções a partir de visitas familiares a museus universitários de ciências”, de Luiza de Souza Lima Macedo, defendida no dia 21 de julho desse ano no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer, realiza uma análise de público de dois museus de ciências de Belo Horizonte: o Museu de História Natural da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e o Espaço do Conhecimento da Universidade Federal de Minas Gerais. Para avaliação do trabalho, estiveram na banca, além da orientadora e da co-orientadora – as professoras Diomira Maria Cicci Pinto Faria e Ana Paula Guimarães Santos Oliveira – eu e Marta Marandino, professora da Universidade de São Paulo, bióloga especializada em pesquisas na área da educação e reputada estudiosa dos museus. Foi uma tarde bastante estimulante.


A comparação do público dos dois museus, localizados em diferentes locais da cidade, por si só revela já contrastes interessantes. Além disso, o trabalho consegue tornar a leitura dos áridos dados estatísticos, com seus gráficos e histogramas, não apenas inteligíveis, como até agradáveis. A propósito, o recurso a métodos quantitativos, ainda pouco usuais nos estudos do lazer, é outro ponto positivo da dissertação. Deixando de lado certo preconceito com os números, que infelizmente ainda cerca alguns setores das Ciências Humanas, Luiza manejou com desenvoltura regressões e outras engenhocas estatísticas. O aprendizado dessas técnicas foi um pouco sofrido, conforme ela revelou em certo ponto da arguição. Mas esforço e perseverança foram mais que suficientes para superar os obstáculos do desconhecimento inicial. Um curso de pós-graduação, afinal, serve como ocasião para aprender o que não se sabe. Encorajada por suas orientadoras, Luiza levou a sério esse objetivo.


A originalidade das informações levantadas através da aplicação de 342 questionários é um dos principais pontos fortes do trabalho. Conforme a própria autora destacou, dados sobre o público de museus no Brasil ainda são mais ou menos escassos e quaisquer esforços nesse sentido são sempre bem-vindos. Além disso, os dados produzidos pela dissertação possivelmente serão úteis às gestões dos dois museus considerados no estudo, embora a dissertação tenha se privado de deduzir recomendações mais explícitas de suas conclusões, o que teria sido positivo. O trabalho também se destaca pelo esforço em estabelecer amplo diálogo com outros levantamentos de público já realizados, tanto no Brasil quanto em outros países, estabelecendo diferenças e semelhanças – mais semelhanças do que diferenças, deve-se dizer.


Estratégias para realização da pesquisa, que envolveu a colaboração de estudantes de graduação em turismo e o recurso a uma oficina promovida por um projeto de extensão com alunos do curso de estatística também são expedientes criativos de que o trabalho se valeu e que merecem ser destacados. A articulação bem-sucedida entre pesquisa na pós-graduação, ensino na graduação e projetos de extensão não é nada trivial.


A adoção de um modelo mais tradicional na estrutura dos capítulos é um pouco frustrante, na medida em que obriga o leitor a esperar até a página 56 para finalmente deparar-se com os dados e com o objeto de pesquisa propriamente dito. No entanto, o pequeno exercício de paciência compensa.


Os achados da pesquisa de Luiza reforçam compreensão internacionalmente consagrada de que museus, como regra, são espaços consideravelmente elitistas. Conforme revela a dissertação, em média, 43% do público desses dois museus é formado por pessoas com rendimentos acima de sete salários mínimos (62% acima de cinco salários mínimos). Com relação a escolaridade, 77% têm curso superior completo ou pós-graduação. É uma concentração assombrosa, embora não surpreendente. Essa aguda desigualdade tem amplas consequências teóricas e políticas, algumas das quais não foram abordadas pela dissertação.


A maioria dos frequentadores desses dois museus, gente branca, rica e com alta escolaridade, percebe os museus como espaços de lazer e o lazer como um tempo para a educação ou aquisição de conhecimentos. Essas percepções reforçam as afinidades entre museus e lazer, de acordo com os valores da maioria desses frequentadores, formados, principalmente, por gente branca, rica e com alta escolaridade – não podemos perder de vista esse perfil. Por outro lado, a maior parte dos que não percebem o museu nesses termos são pretos ou pardos, uma minoria de 41% desse universo. Assim, vai revelando a pesquisa de Luiza, quanto maior a escolaridade e a renda, maior a participação percentual entre o público frequentador desses museus e maior a propensão de encarar os museus como espaços de lazer.


Se os pretos ou pardos que frequentam os museus tendem a não perceber esse espaço como um lazer, como eles encaram um museu então? Dito de outro modo, invertendo a questão, se esse grupo não associa museus com lazer, qual entendimento de lazer eles teriam então? A dissertação não formula essas questões tão abertamente. Todavia, a partir dos dados apresentados por ela, em combinação com outras fontes bibliográficas já disponíveis, podemos tecer algumas conjecturas, que talvez sirvam para animar outros esforços mais sistemáticos nesse sentido.


Essa percepção dos pretos ou pardos que não reconhecem nos museus espaços de lazer de certo modo está em conformidade com concepções populares predominantes a respeito dos sentidos para os usos do tempo livre. Conquanto museus são concebidos fundamentalmente como espaços de educação, e não como locais para diversão ou o entretenimento, concepções populares tendem a enfatizar o lazer como um tempo oportuno para a diversão e o entretenimento. Desse modo, apenas os que concebem o lazer como um equivalente à educação podem encarar o museu como lazer. No entanto, essa concepção educativa de lazer é bastante restrita, confinando-se aos grupos mais escolarizados e de renda mais elevada. Não por acaso, esses grupos são os mesmos que formam a maioria de frequentadores de museus, espaços sociais historicamente consagrados à educação das elites e à difusão da cultura erudita. Assim, concepções que presidem a organização de museus coincidem quase plenamente com concepções de lazer dos grupos mais ricos e mais escolarizados, que por isso mesmo associam-no como um local também de lazer.


Algo semelhante não poderia ser dito para o conjunto mais amplo da população, em que mais de 50% dos brasileiros maiores de 25 anos não terminaram sequer o ensino fundamental, conforme dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua. Sem surpresa, pesquisa recente sobre o lazer do brasileiro, coordenada por Edmur Stopa e Helder Isayama, revelaram que apenas 1% da população aponta atividades intelectuais como um objeto de desejo para os seus lazeres.


Nesse sentido, poderíamos dizer que há uma espécie de desencontro nas concepções que orientam a organização dos museus e as expectativas de lazer de amplos setores da população. Enquanto gestores de museus buscam oferecer oportunidades de educação no tempo livre, em conformidade aos valores e sensibilidades dos estamentos superiores, amplos setores da população, pobres e com pouca escolaridade, buscam tão somente diversão em seus lazeres. Assim, é a concepção mesmo dos museus como um espaço de educação, e não de lazer, um dos elementos a reforçar o afastamento do público mais pobre e menos escolarizado desses locais. Esse desencontro é e possivelmente continuará sendo por um bom tempo uma das principais barreiras a quaisquer esforços para que museus operem como instâncias de “democratização da cultura”.


Em tais circunstâncias, o financiamento governamental da cultura que garante gratuidade em vários museus, seja por meio de leis de incentivo ou quaisquer outros mecanismos, na prática opera como um expediente de tributação regressiva, transferindo recursos públicos para o gozo do lazer dos mais ricos, como evidencia exemplarmente o perfil dos frequentadores de museus apurado pela pesquisa de Luiza. Esta é uma ferida aberta nas discussões sobre políticas culturais, que deveria, por isso mesmo, ser pautada com coragem e discernimento. Luiza, no entanto, como vários pesquisadores da cultura, passou ao largo do assunto, preferindo evitar esse campo minado, politicamente bastante embaraçoso. Porque reivindicar mais recursos públicos para espaços de cultura quando sabemos que a maioria dos frequentadores desses espaços é formada por uma casta rica e bem-educada? A mera elevação do orçamento público dedicado à cultura acaso poderia alterar o perfil dos frequentadores? Qual mágica explicaria essa transformação?


A literatura especializada sobre o lazer, por seu turno, frequentemente elitista e cheia de prescrições normativas, quase sempre enquadrando concepções populares como desvios ou alienações, costuma explicar o desinteresse generalizado por atividades intelectuais no tempo livre como o resultado de “pouco incentivo por parte do poder público”. Implicitamente, conclusões desse tipo postulam uma espécie de inevitabilidade do gosto cultural erudito típico das elites, imaginando que todos poderiam desenvolver predileções desse mesmo tipo, envolvendo a visita de museus ou bibliotecas, desde que houvesse incentivo suficiente por parte do poder público.


Apesar das boas intenções desse tipo de argumento, esta é apenas uma forma de dissimular preconceitos de classe, que se negam a aceitar a inevitável diversidade de preferências culturais que permeiam diferentes grupos e classes sociais. Ao invés de relativizar a natureza do funcionamento dos museus e outros espaços de cultura, que poderiam ser criticados por serem impermeáveis aos valores de grupos populares, enfatiza-se as incapacidades do público pobre e pouco escolarizado, desprovidos de fato do domínio dos códigos necessários para a fruição das experiências e conteúdos ofertados nesses lugares. Em outras palavras, prefere-se advogar a reforma do povo a ter que reivindicar a reforma dos museus ou outros espaços de cultura.


A dissertação de Luiza poderia ser lida quase como um brado em favor da assimilação de mais oportunidades de lazer e diversão nos museus, embora a autora tenha sido mais comedida em suas conclusões. Da minha parte, sabidamente menos comedido, sonho com museus capazes de funcionar como parques. Para os estetas, pode parecer banal, mas possivelmente parecerá também mais democrático.


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Para saber mais:

DABUL, Lígia. Museus de grandes novidades: centros culturais e seu público. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 257-278, jan./jun. 2008.


DIAS, Cleber. Em favor do cotidiano: lazer e políticas culturais em Goiânia. Goiânia: Editora da PUC-GO, 2011.


GOLDENSTEIN, Gisela Taschner. Lazer operário e consumo cultural na São Paulo dos anos 80. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, vol. 31, n. 3, p. 13-35, jul./set. 1991.


STOPPA; Edmur Antonio; ISAYAMA, Helder Ferreira (Orgs.). Lazer no Brasil: Representações e Concretizações das Vivências Cotidianas. Campinas: Autores Associados, 2017.

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