Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
A cultura do cancelamento se fez tema quente, dadas as repercussões do Big Brother Brasil deste ano. Embora não disponha de tempo para assistir ao programa, o considero um laboratório de observação social. Uma amostra de certos modos regulares de agir e pensar de vastas parcelas do povo brasileiro. O raciocínio é homólogo ao aplicado às atitudes de Bolsonaro; poucas vezes na história um presidente representou tão perfeitamente os cerca de 65% que o julgam regular, bom ou ótimo.
Quando, nas eleições presidenciais de 2002, o povo sentia as duras consequências sociais do neoliberalismo, com cerca de quarenta milhões de miseráveis espalhados pelas cidades, houve solidariedade genuína com os excluídos. E Lula também representou legitimamente valores difusos na sociedade. A geração de hoje, mesmo com as tendências recessivas predominantes desde 2016, se formou em um contexto de ampliação substancial da capacidade de consumo (entre 2003 e 2014, pelo menos). E, em larga medida, tornou-se egoísta, preconceituosa e ambiciosa. Razão pela qual se identifica com seu representante do executivo.
Não sou naturalmente contrário ao consumo, a que todos têm direito. Mas direitos são inseparáveis de deveres, senso de cidadania e serviço à coletividade; sem o que engendram egoísmo, orgulho, vaidade. Os bens de consumo constituem marcadores de posição e classe social, conforme sugeriram Mary Douglas e Baron Isherwood. Uma política que priorize apenas sua aquisição forma aspirantes à elite (seja lá o que esta palavra possa significar).
No país das áreas VIP, o Big Brother constitui o caso exemplar. O espaço insulado, exclusivo das celebridades, a que muitíssimos brasileiros querem chegar. Como ideal a ser alcançado, termina por ocupar o território da devoção, do sagrado. Quem lá está constitui o grande modelo e guia para quem, aqui fora, deseja se converter em influencer.
Mas o ódio é uma deformação da paixão. Quem venera suas celebridades não quer vê-las em flagrantes atitudes das quais se envergonha. O cancelamento do ídolo opera no outro o que o recalque faz no eu: joga para baixo do tapete as consequências da busca insaciável pelo prazer egoísta e da pretensão de superioridade que institui o preconceito.
Se quero ser maior que os demais, forçoso é admitir que há grandes e pequenos. Ato contínuo, miro nos grandes e desejo me igualar a eles (mas por um gênero de igualdade que admite a desigualdade). Vejo apenas virtudes e ignoro vícios. E termino por recalcar os meus próprios defeitos para mimetizar a arrogância míope do famoso que desejaria ser.
O BBB, no entanto, provoca um curto-circuito neste efeito em cadeia do autoengano: ele pretende produzir celebridades sob um regime panóptico que torna impossível a maquiagem das imperfeições. Neste cenário o cancelamento nada mais é que a contrapartida da idolatria, do mesmo modo que o preconceito é outra face do endeusamento. Ambos jazem enfermos da mesma febre que nubla os olhos doentes, impedindo-os de ver as criaturas todas imperfeitas e, por conseguinte, amá-las sem acepção.
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