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O CENTENÁRIO DE PAULO FREIRE E A LIBERTAÇÃO DO BRASIL

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


O centenário de Paulo Freire está sendo comemorado mediante a abundância de frases laudatórias e a miséria da prática concreta de seu exemplo. Antes de ser educador e patrono da educação brasileira, o formulador da Pedagogia Libertadora foi um ser humano profundamente respeitoso da religiosidade popular. Isso não o fez abdicar, contudo, de sua vocação docente. Nem demonizou as crenças dos trabalhadores, nem as idolatrou; antes dialogou com elas, em genuína condição de horizontalidade.


Como se sabe, as fronteiras entre religião e política, em tese estabelecidas desde o Iluminismo e a Revolução Francesa, se romperam por completo entre nós, como alhures. Em confronto com os valores da crença, argumentos racionais no campo da ética laica têm a mesma eficácia que a espada para produzir entendimento. Importa lançar luz sobre o mérito da mensagem religiosa para engendrar relações políticas salutares. Paulo Freire não sofismou a natureza libertadora desta tarefa histórica que consiste em comungar fraternalmente com os trabalhadores a partir de um de seus mais nucleares temas geradores – a espiritualidade.


E, no entanto, o materialismo, paradigma predominante de nosso tempo, impõe um limite quase intransponível ao diálogo interdisciplinar entre Educação, Ciências Sociais e Teologia. De vez que isso supõe o chamado princípio etnográfico da caridade – isto é, o pressuposto basilar de que aquilo que o interlocutor diz pode fazer sentido, conforme a definição do antropólogo português João de Pina-Cabral. Ocorre que mesmo não dispondo de indícios científicos da validade de seus axiomas, o materialismo recusa qualquer concessão à Teologia. Eis porque o antropólogo Márcio Goldman denuncia os clichês anticientíficos do discurso acadêmico segundo os quais espíritos não podem existir. Onde as evidências que fundamentem tal assertiva?


Mas o problema brasileiro exige solução ainda mais específica. Trata-se de lançar luz sobre a Teologia cristã e de extrair com rigor a Filosofia Moral e a Filosofia da História subjacente ao evangelho de Jesus – alguma coisa sobre o que Paulo Freire possuía límpida consciência. Por curioso que possa parecer, a cura para as dores de cabeça da esquerda depende hoje da boa exegese bíblica. É que os opositores da democracia pertencem, em grande medida, aos segmentos sociais entre os quais vigora uma interpretação literalista dos textos sagrados. Antes que a desconstrução das falácias teológicas se realize, os falsos profetas e falsos messias seguirão raptando a boa vontade do oprimido.


O literalismo bíblico é um caso particular do anacronismo. Este consiste na aplicação de valores e significados do presente na leitura de documentos do passado; aquele compreende a leitura de textos produzidos em outros contextos culturais conforme a lógica objetivista. Inaugurado pelo pensamento científico o objetivismo, entretanto, se difundiu para gêneros textuais estranhos à racionalidade que o gestou. É frequente, por exemplo, que a literatura ficcional ou a dramaturgia – que não possuem compromissos com a descrição e narração objetiva do mundo – sejam vitimadas pela interpretação literalista. Metáforas, alegorias, parábolas, aforismos, poesias, mitos, fábulas, cânticos são assim julgados por critérios alheios aos seus próprios códigos a lhes indagarem sobre a verdade objetiva – pela qual, aliás, não nutrem necessário interesse.


O problema é ainda mais grave quando o texto em questão pertence a um gênero religioso multimilenário, como é o caso judaico-cristão. A literatura hebraica é construída a partir do que Dorothy D. Lee denomina codificações não lineares da realidade. As codificações lineares, diz-nos a linguista, estruturam o texto por referência a uma sucessão de enunciações em linha. A exposição completa dos argumentos carece assim da duração contínua do tempo verbal ou da superfície espacial que recebe a escritura. As codificações não lineares, por outro lado, se apresentam por meio de blocos de imagens compostas ou contraídas em padrões simbólicos arquetípicos. Os hieróglifos, os ideogramas, as parábolas e os aforismos compreendem exemplos de codificações não lineares da realidade.


Ademais, a exegese literária dos sábios hebreus baseia-se no princípio segundo o qual seus textos sagrados possuem setenta faces – sendo o sete (e seus múltiplos) o símbolo do infinito e da eternidade. Para estes exegetas a palavra de Deus, mesmo quando gravada na matéria por meio da escrita, é viva e possui plasticidade de aplicação. Porquanto, operando com princípios éticos universais inscritos na lei divina, trata cada evento histórico como caso particular de possibilidades gerais de desvio ou aproximação. Tais princípios se organizam a partir de uma estrutura metonímica, em que a parte contém o todo. Deste ponto de vista, tudo no universo (ou na criação divina) evolui conforme o padrão da semente ou do ovo – nos quais já se encontram em germe, por exemplo, a maior Sequoia do mundo ou Einstein, respectivamente. Nada mais distante, portanto, do literalismo que alimenta o fundamentalismo religioso e sua utilização política.


Consideremos dois exemplos; um do início, outro do fim da Bíblia. Primeiro, a criação do mundo no Gênesis. Quanta tinta e sangue já rolaram por conta da falsa oposição entre este livro e o evolucionismo darwiniano! Diz o escrito de Moisés que o mundo foi criado em um ciclo de sete. Isso mesmo; o termo hebraico shavua não significa apenas sete dias, conforme a tradução comum que se faz. Trata-se antes de uma lógica metonímica que inclui sete dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos, milênios e mesmo bilhões de anos. Os judeus falam, por exemplo, da semana (ou shavua) adâmica – um período de tempo que se inicia com o surgimento de Adão (cerca de quatro mil anos antes de Cristo, conforme a cronologia bíblica) e que deverá se encerrar no terceiro milênio de nossa era, quando então inaugurar-se-á um tempo de renovação ética da vida na Terra. Noutra escala temporal se encontra a shavua do capítulo 1 do Gênesis – a dos bilhões de anos. Considerando que a Astronomia conjectura cerca de 14 bilhões de anos para a idade do universo, cada dia da criação poderia durar até dois bilhões. Há mesmo quem diga não estarmos ainda no sétimo dia, quando Deus descansará; de vez que o Homo Sapiens criado no sexto dia da shavua tem cerca de quinhentos mil anos. Adão e Eva marcariam o advento da escrita. Nenhuma incompatibilidade há, pois, entre a teologia veterotestamentária e a ciência. Trata-se de domínios do pensamento humano com agendas e aspirações distintas, nada mais que isso.


Os mesmos pressupostos interpretativos vigoram no chamado Novo Testamento. Assim é que o apóstolo Pedro argumenta que um dia para o Senhor é como mil anos e mil anos, como um dia. No Apocalipse, último livro da Bíblia, encontram-se em plena vigência os mesmos princípios metonímicos a entrelaçar tempo histórico e profecias de natureza eminentemente simbólica. Assim é que seu autor, o evangelista João, tendo já testemunhado a queda de Jerusalém em 70 d. C., evoca o fato tanto para confirmar as previsões de Jesus quanto para profetizar as grandes guerras e infortúnios que deverão se seguir na história, como decorrência de uma escolha infeliz da humanidade. Já volto ao mérito desta escolha e das suas consequências inscritas no gênero apocalíptico. Por ora isto basta para ilustrar a dificuldade de aplicação do literalismo às escrituras da tradição hebraica. Além de lançar luz sobre o caráter enigmático da literatura cristã, este sistema de exegese textual pode ser útil às Ciências Humanas, posto que a metonímica histórica oferece uma terceira via entre a interpretação objetiva e a metafórica.


Tudo o que está dito até aqui, contudo, apenas arranha a superfície do problema. É preciso, mais que isso! Necessário se faz depreender das escrituras sagradas aquela Filosofia Moral de fundo e sua Filosofia da História. São nelas que reside a chave que abre a prisão fundamentalista em que estão encerrados muitos trabalhadores brasileiros. Voltamos assim àquela escolha infeliz registrada nos documentos evangélicos.


Antes da crucificação, Jesus adentra Jerusalém montado em um jumentinho, expressando com isso enfática recusa a se valer do cavalo de guerra. A política do evangelho não se orienta, pois, pelo conflito, mas pelo amor do serviço à humanidade. Esta estratégia não violenta para a resolução dos problemas sociais chegou ao ápice com a morte silenciosa do Mestre do cristianismo. A consulta de Pilatos ao povo resume metonimicamente todo o vasto conjunto das escolhas infelizes da história política: deveria libertar a política do amor de Jesus ou a política do conflito e da revolta armadas de Barrabás (que fora preso por liderar uma rebelião contra o domínio romano, tendo assassinado um homem)? Dos zelotes (movimento de guerrilha a que Barrabás pertencia), passando pelas cruzadas, pelo terror jacobino, até a luta de classes marxiana ou a imposição do leviatã burguês, a humanidade tem deixado livre Barrabás e assassinado Jesus.


Eis porque o próprio Cristo previu aquela destruição de Jerusalém, no ano 70. A acrimônia dos judeus conduziria inevitavelmente a este desfecho. Eis porque o Apocalipse de João emprega tantas imagens teratológicas para profetizar a história futura. Trata-se de uma Filosofia da História muito distinta da hegeliana. Enquanto esta pressupõe que a humanidade evolui pelo aperfeiçoamento contínuo das teses, antíteses e sínteses do Espírito, aquela sugere a necessidade das opções infelizes se acumularem até chegar ao grau de saturação necessário ao arrependimento. Por isso a hipocrisia dos fariseus é qualificada como um fermento, nos evangelhos. Até que a fermentação se encerre, as guerras e catástrofes crescem exponencialmente em seu poder destrutivo, como decorrência da dureza do coração humano – já descrita na alegoria histórica (posto que a um só tempo evento empírico e estrutura simbólica, portanto, metonímia) de faraó do Egito, no livro do Êxodo, o segundo da Bíblia.


Eis também o cerne filosófico da guerra fria civil na política brasileira hodierna. Já tratei deste problema aqui. Houve um tempo em que o Brasil contava com intelectuais orgânicos, no coração das comunidades religiosas populares. Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dorothy Stang, Ruben Alves, Paulo Freire. Temos ainda valorosos profetas do amor cristão; Papa Francisco, padre Júlio Lancelot, frei Beto, Leonardo Boff, pastor Henrique Vieira e uma multidão de anônimos iluminados pela luz do evangelho de Cristo – que, em sua essência, é radicalmente ecumênico, saliente-se. E, no entanto, depois que a defesa do Estado laico se deformou no ateísmo fundamentalista – irmanado no mesmo literalismo bíblico com Edir Macedo e Silas Malafaia – o veneno belicoso de Barrabás foi inoculado nos segmentos políticos de esquerda, deixando que o paternalismo de direita ocupasse o vazio de amor que nos jogou no fundo do abismo em que nos encontramos.


Este texto não é um chamado à conversão de ninguém; trata antes de reconhecer a centralidade política do princípio etnográfico da caridade. Na medida em que recusa a possibilidade de coerência aos sistemas teológicos, o ateísmo reserva a pretensão de validade discursiva a si próprio. Expressa com isso orgulho e vaidade – dois vícios humanos combatidos por todas as tradições religiosas. Paulo Freire, diferente disso, fez da caridade o cerne da descoberta do que hoje se conhece por aprendizagem significativa; única forma possível de cooperar com a libertação daqueles irmãos encerrados na opressão do farisaísmo que literalmente nos preside.

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