Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Argumentei que a ineficácia da educação brasileira se deve a uma inversão epistemológica (a tentativa de ensinar os produtos finais das pesquisas acadêmicas sem recapitular as experimentações e observações práticas que os precedem), de um lado, e a um paradoxo (o objetivo de demonstrar a natureza prazerosa do conhecimento mediante relações pedagógicas aversivas, policialescas e sádicas), de outro. Importa ainda descrever as causas ou origens deste dilema. Indo direto ao ponto, ele decorre do escravismo brasileiro.
Aquela inversão epistemológica data do uso dos títulos acadêmicos, de “doutor” e “bacharel”, como marcas de distinção social dos filhos dos “coronéis”. Desde o princípio, portanto, houve uma relação de paternidade entre o autoritarismo paramilitar e a arrogância intelectual. Ocorre que a vaidade honorífica constitui a barreira mais intransponível ao aprendizado genuíno e permanente. O jovem senhor de escravo já seguia do Brasil para Coimbra sentindo-se “dotô” e de lá regressava sem que tais disposições mentais se alterassem. Entrementes pouca coisa de real valor deveria, pois, ter sido aprendida.
A Medicina, a Engenharia e o Direito brasileiros nasceram cheios de forma e vazios de conteúdo. Daí à absoluta subsunção das demais formações acadêmicas, o magistério incluído, ao formalismo oco, não se deu senão um passo curto. Ficamos aí estagnados, preservando o habitus de “dotô-coroné” sem, contudo, vislumbrar as etapas cognitivas do pensamento sistemático. Vigora entre nós muita desconfiança e criminalização, características do padrão de relações senhor/escravo, e pouco diálogo intelectualmente fértil.
Outro desdobramento do escravismo é a obsessão pelo trabalho exaustivo. Isso parece ter ficado ainda mais evidente durante a quarentena. Há hoje absoluta violação da vida privada dos professores, com a invasão de sua esfera doméstica pelas coordenadorias de sadismo pedagógico. Conquanto seus filhos também estejam em casa, submetidos ao mesmo isolamento que seus discentes, docentes se veem forçados a manter indelével sua jornada de trabalho. Devem subtrair dos primeiros os recursos tecnológicos disponíveis, em benefício da formação dos segundos. Irritam-se com os mais jovens, que reclamam a justa atenção, sequestrada, no entanto, pelo home office. Para compensar a ausência da relação presencial, estes novos cativos do século XXI são compelidos a lançar mão de mil recursos pedagógicos, cujos custos deslizaram integralmente das secretarias de educação para os salários. Pode mesmo ocorrer aos gestores propor um novo normal digital porque muito mais neoliberal.
Nosso escravismo é também patriarcal e misógino! Apesar das mulheres terem em média maior escolarização e melhor rendimento acadêmico que os homens, são elas que ocupam os postos de menor qualificação, da educação infantil e do ensino fundamental, onde a exploração é, a um só tempo, mais intensiva e extensiva. Nada poderia ser, aliás, mais pernicioso à educação do país, já que a natureza da cognição infantil exige da professora ou do professor qualificação mais sofisticada – a qual, por seu turno, depende de tempo liberado, condição do pensamento criativo.
Junto com as mulheres, sofrem os estudantes. À ideia fixa da integralização do ano letivo se soma a mediação de um volume industrial de conteúdo. Esta constitui a estratégia do sistema escolar (em conluio com muitos pais) para espantar o fantasma do tempo livre que espreita as almas das crianças brasileiras.
Trabalho exaustivo e ocupação integral da vida constituem nossa compulsão. A imaginação oficial do Brasil não transitou da mais valia absoluta à relativa. Não poderia fazê-lo, não tem tempo para isso! Marx sugeriu que a tecnologia não pode ser investida na produção enquanto seu preço for superior ao preço do trabalho. Caio Prado Jr. argumentou que a Inglaterra já enfardava algodão mecanicamente quando, no Brasil, o cotonicultor empregava escravos na mesma operação. Certo, o escravo não sobrevivia mais que trinta anos porque o vapor que subia do fardo de algodão ao ser pisado era singularmente deletério. Mas os milhões de escravos africanos que aqui desembarcaram (só no Cais do Valongo, Zona Portuária do Rio de Janeiro, foi cerca de um milhão) eram mais baratos que as enfardadoras inglesas.
O dilema econômico da educação brasileira se expressa sob a forma de uma cobra que morde o próprio rabo! A ineficiência do sistema escolar fornece mão de obra barata ao sistema econômico. De posse dela, a produção pode prescindir inteiramente de sofisticação científica e tecnológica. Uma economia low-tech pode subsistir com baixo investimento (não apenas financeiro, mas também cognitivo) em educação. Importa romper este círculo vicioso!
Formação em conhecimentos e processos de alta complexidade leva ao aumento do valor social da força de trabalho. Para prescindir da mão de obra mais cara, o empresário opta pela sofisticação tecnológica e automação. Isso pode liberar o trabalho humano que, mediante jornadas semanais de vinte horas, por exemplo, encontra a oportunidade de empregar uma parcela maior de sua vida em qualificação científica, artes, esportes, lazer. Restituídas as etapas epistemológicas adequadas, o sistema educacional forma empreendedores científicos, capazes de elaborar produtos e serviços responsivos à natural diversidade das demandas humanas.
Defendo a hipótese de que a uma criatividade social qualificada corresponde um crescimento exponencial da demanda por trabalho humano. O desemprego ocorre quando um povo precisa consumir ideias (objetivadas em produtos e serviços) importadas. Uma nova economia tupiniquim, perspectivista, ecológica e plural, é possível! Liberar o tempo do povo brasileiro e livrar do sadismo escravista nossa vida social, constituem duas condições necessárias para isso. A articulação de ambas é nossa condição suficiente. Como já escrevi neste saboroso portal, estes processos já se encontram em plena germinação, sob o solo fértil da juventude digital.
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