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O EQUÍVOCO DE ATILA IAMARINO

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


Um dos mais recentes vídeos do divulgador científico Atila Iamarino gerou polêmica. Por meio de argumentos, a um só tempo, objetivos e sofisticados, o biólogo comparou o sistema de reprodução dos insetos sociais com o livre mercado. Para isso, tentou demonstrar as equivalências entre formigueiros, computadores e a bolsa de valores.



Praticamente todos os estudantes que cursaram a disciplina que leciono na UERJ devem ter pensado que eu era louco por fazer algo parecido. Em um curso que opera com as Ciências Sociais, emprego metade de uma das aulas tratando de formigas. O argumento de Iamarino, no entanto, tem um erro grave. As unidades que ele seleciona para comparar não são homólogas.



Homologias são equivalências. Trata-se de fenômenos distintos entre si, que desempenham papéis equivalentes em processos de escalas diferentes. As diferenças de escala não inviabilizam as comparações. No entanto, para que o método comparativo possa realizar seu potencial heurístico, importa que o observador, antes de tudo, construa unidades homólogas.



Ao contrário do que muitos críticos têm sugerido, o caráter determinista da regulação dos formigueiros frente à autonomia relativa do comportamento humano não inviabiliza a comparação de Iamarino. Os neurobiólogos Humberto Maturana e Francisco Varela fazem isso de modo muitíssimo competente em “A árvore do conhecimento: bases biológicas da compreensão humana”. O que esta diferença de natureza pode fazer é induzir o observador ao erro, durante o processo preliminar de elaboração das unidades de comparação. Eis o que se passou com os argumentos deste competente biólogo.



O processo de computação que regula a reprodução do formigueiro se realiza mediante estímulos químicos. Os membros da sociedade dos insetos se comunicam por meio de uma troca de substâncias alimentares e hormonais denominada trofolaxe. Todas as informações necessárias à manutenção do organismo social são processadas nesta dinâmica de troca contínua entre vastos circuitos comunicacionais. O número necessário de formigas soldado, cortadeiras ou enfermeiras é regulado na computação da trofolaxe, conforme nota acertadamente o pesquisador.



E, no entanto, o erro do seu argumento reside em comparar a dinâmica de reprodução biológica das formigas com a dinâmica da produção e circulação dos meios de reprodução biológica dos humanos. Aqui é importante reparar na inclusão de um substantivo, no segundo termo de comparação – os meios de reprodução e não o processo de reprodução em si mesmo –; o que institui uma inequivalência entre as unidades comparadas e, por conseguinte, invalida toda a operação.



Para corrigir seu erro Iamarino teria pelo menos duas opções. Por um lado, poderia comparar o processo de reprodução biológica das duas espécies; por outro, seria aconselhável também cotejar os sistemas de produção dos meios de reprodução biológica de ambas. Eis o que quero fazer, no espaço que me resta.



A comunicação ensejada pela trofolaxe padroniza o comportamento reprodutivo do formigueiro. Mas o faz dividindo o tecido social em castas, conforme nota acertadamente o biólogo. Na medida em que a distribuição do trabalho social é regulada por meios hormonais e nutricionais, não há qualquer margem de liberdade para o comportamento das formigas isoladas. Esta é a razão pela qual, como já veremos, não se pode comparar o metabolismo social dos insetos com o “livre mercado”, ao menos se levarmos a sério a primeira palavra da expressão. Em primeiro lugar, as formigas não têm liberdade reprodutiva; todas a não ser a rainha são estéreis. Em seguida, são totalmente desprovidas de liberdade alimentar. Operárias comem comida de operárias, soldados comem comida de soldados, rainhas comem comida de rainha.



Não tenho absolutamente nenhum preconceito contra a pessoa que julga o regime do formigueiro maravilhoso. Mas é indispensável encontrar, na escala das sociedades humanas, as unidades de comparação equivalentes para não confundir alhos com bugalhos. Deixarei para os leitores qualificados deste blog a resposta a esta indagação. Qual regime socioeconômico humano regula as liberdades reprodutivas de seus cidadãos, de um lado, e distribui cotas padronizadas de ração alimentar, de outro?



Antes de passarmos à segunda alternativa de comparação disponível a Iamarino, é indispensável antecipar uma contestação possível. O cientista que tanto contribuiu para nosso enfrentamento do Covid-19, pode-se argumentar, se concentrou especificamente sobre o processo de computação dos insetos sociais e os comparou com a computação dos mercados financeiros. Certo. Mas ainda aqui os termos da comparação não são homólogos. A estrutura de processamento de informações de um formigueiro se assemelha antes ao funcionamento do cérebro humano. Mesmo aqui a comparação é muito precária; enquanto o número de formigas em um formigueiro se conta aos milhões, cada cérebro humano tem cerca de cem bilhões de neurônios. A diferença entre os processos computacionais de ambos é exponencial.



Há mais. Mesmo se considerarmos o planeta Terra como um grande formigueiro – esta parece ser a imagem que meu colega cientista elaborou de modo algo descuidado – a diferença de escala demográfica inviabiliza a comparação. A passagem dos milhões aos bilhões acrescenta variáveis tão múltiplas que mesmo o brilhante imunologista, ou o economista que ele cita – de inteligência menos exuberante –, Friedrich Hayek, são incapazes de considerar.



Mas ao enunciar um argumento meramente demográfico estamos longe de arranhar a superfície das inequivalências entre formigas e humanos. Se insistirmos na comparação cega, isto é, não equipada com um acervo de homologias previamente inventariadas, defrontamos uma diferença de natureza mais radical. Se, por exemplo, confundirmos homologia (ou equivalência) com semelhança, nos sentiremos autorizados a comparar cada cérebro humano a um formigueiro. Com efeito, o processamento neural se dá por meio da integração de vastas constelações sinápticas. Sinapses são conexões entre neurônios que possibilitam a troca de substâncias químicas denominadas neurotransmissores. Os neurônios se integram por meio de uma trofolaxe, por assim dizer.



Mas a diferença entre o cérebro e o formigueiro, para além da complexidade conectiva que decorre da diferença demográfica, tem literalmente raízes profundas. Enquanto cada formiga acumula as funções de produção, reprodução social e computação das informações reguladoras do metabolismo do formigueiro, os neurônios são especializados na computação. A estrutura do neurônio se assemelha, por isso, mais ao complexo laboratório bioquímico das árvores que à fisiologia de um inseto. Os dentritos neuronais são captadores de estímulos homólogos à folhagem de uma copa. O centro trófico, onde se situam as organelas, o núcleo, o DNA do neurônio, equivalem aos troncos vegetais. Os axônios correspondem às raízes e se conectam não apenas com outros dentritos, mas também com todas as demais estruturas do corpo humano.



Esta complexidade dota o cérebro de uma faculdade adicional, que o formigueiro ignora. A saber, a reflexividade. O cérebro tem consciência de si e da existência de outros oito bilhões de cérebros semelhantes a ele; o formigueiro, não. Isto impõe variáveis comportamentais que inviabilizam uma comparação simétrica e totalizadora entre sociedades de insetos e humanas. As formigas operam com um e apenas um regime econômico; os humanos, não. O que me conduz finalmente à segunda alternativa de comparação, negligenciada por Iamarino.



Podemos, com efeito, confrontar para fins heurísticos o regime de produção de meios de reprodução social em ambas as sociedades, de insetos e humanas. Mas agora, com as devidas homologias restituídas. Tratemos então o sistema constituído por múltiplos formigueiros como equivalentes precários do sistema articulado pela interação entre múltiplos cérebros humanos. De fato o livre mercado apresenta, neste novo patamar de argumentação, homologias com o regime de distribuição do trabalho no formigueiro. Isso porque os discípulos de Hayek tratam a qualificação para o trabalho como um ativo econômico. Eis a tão famosa quanto frágil teoria do capital humano. Como ativo, a formação profissional precisa estar regulada pelo mercado e suas flutuações espontâneas de oferta e demanda. O que o livre mercado, entretanto, deixa na penumbra é o conjunto de dispositivos que interrompem a livre circulação do conhecimento e dos meios de sua produção. A disputa por estes meios não é meritocrática, como se sugere, mas equivalente à determinação química da especialização do trabalho, no formigueiro. As dietas diferenciais das múltiplas castas que dividem as sociedades humanas são dimensionadas em cotas assimétricas de ração alimentar. Similarmente, os meios de produção da qualificação para o trabalho – que entre nós compreendem escolas e universidades e entre as formigas se constituem em hormônios – são também distribuídos pela reprodução geracional, no interior de cada uma das castas. A livre competição entre formigas soldado – cujo contingente se compõe mediante exclusão prévia das formigas operárias –, em um mesmo território, equivale à disputa pelas fatias de mercado entre duas grandes franquias – cujo capital foi concentrado previamente mediante o trabalho não pago, o rentismo e, sobretudo, o monopólio dos meios de circulação de bens e serviços (muito mais que dos meios de produção, no mundo contemporâneo).



Me esforcei, neste texto, por preservar a argumentação no nível da etologia, ativado por Atila Iamarino. É indispensável registrar, contudo, que a comparação comportamental permanece no patamar de reflexão mais superficial que o tema permite. Não haveria mesmo espaço num texto desta natureza para desenvolver todas as implicações decorrentes, por exemplo, da inserção dos domínios linguísticos, multissensoriais e simbólicos, que caracterizam a comunicação humana. Os problemas da simultaneidade da mensagem, possibilitada pela tecnologia de comunicação, e da sincronização de cérebros que ela enseja, bem como do monopólio de informações comportamentais, reunidas em big data que disto decorre, também foram negligenciados. É neste plano de complexidade que se deve analisar a formação dos monopólios e oligopólios, bem como as estratégias de interrupção dos fluxos de livre circulação de produtos e serviços que invalidam, na prática econômica substantiva, os postulados de Hayek.



De minha parte, amo observar a natureza. Em meio à beleza da criação, os insetos sociais constituem meus objetos favoritos de admiração. Não obstante, jamais vi um cluster de formigueiros privatizar determinado território para franquear o uso de seus recursos apenas àqueles incluídos em seu circuito de compadrio. Bem ao contrário, a inspiração fundamental que os insetos sociais nos oferecem reside na absoluta ausência de conflitos sociais e no harmônico trabalho cooperativo que levam a curso. Sob este ponto de vista, as formigas estão acima de nós, na escala da evolução.


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