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O ESPORTE PROMOVE A PAZ?

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


Já se convencionou, nos meios sociológicos, que o esporte é espaço para vivência intensiva de emoções que precisam ser controladas na vida cotidiana. Dentre elas, figura a agressividade, experimentada sem muitos crivos no campo esportivo, de um lado, e modulada por variados graus de sublimação fora dele, de outro. Recapitulando argumentos já publicados neste portal, a civilização (no sentido das regras de conduta compartilhadas por coletivos humanos, bem entendido, e não na acepção eurocêntrica) supõe o controle social sobre as pulsões, o qual vai sendo incorporado, literalmente inscrito nos corpos, sob a forma de autocontrole. A vida em sociedade seria inviável na ausência de espaços e tempos relativamente livres deste cerceamento afetivo e pulsional – vale dizer, territorialidades e temporalidades em que as regras, conquanto nunca ausentes, regulamentam, mas não impugnam a expressão enérgica das emoções. Eis uma hipótese muito difícil de contestar acerca da função social do fenômeno esportivo.


Menos certo, entretanto, é o pressuposto de que o esporte constitui um ritual. Há mesmo na Antropologia quem conteste enfaticamente esta definição. Lévi-Strauss, por exemplo, trata-o como prática social simétrica e inversa à dos ritos. Enquanto estes reúnem grupos sociais erodidos pelas particularidades de cada integrante para celebrar a coesão social, o esporte reúne competidores equivalentes para distingui-los, como vencedores e perdedores, ao fim da competição. O ritual parte de uma assimetria para instituir a simetria; o esporte procede na direção oposta. O primeiro é, nos temos levistraussianos, conjuntivo; o segundo, disjuntivo.


Mesmo seguidores do estruturalismo, entretanto, contestaram essa divisão. Marshall Sahlins, por exemplo, sugere que o argumento de Lévi-Strauss é exagerado, que as analogias empregadas forçam os fatos empíricos. Ritual e esporte compartilham uma característica central – qual seja, o desfecho padronizado. Embora no âmbito esportivo as regras tentem assegurar a imprevisibilidade do resultado, há finais prescritos e proscritos. Vitória e derrota compreendem o resultado esperado, ao posso que um empate é profundamente frustrante. O fato de os rituais dos povos não ocidentais enfatizarem a coesão e dos esportes assentarem na divisão apenas ilustra um aspecto elementar das teorias dos rituais: a saber, que eles celebram os valores centrais dos povos que os encenam. A competição no mundo urbano industrial gestado na Europa e difundido pelo colonialismo; a cooperação alhures – ou, em linguagem econômica, a lógica do mercado e a lógica da reciprocidade, respectivamente. Mesmo a possibilidade de resultado indesejado no esporte – isto é, do empate, conforme a análise de Sahlins – ilustra o imaginário ocidental da emergência imprevisível da história, do mesmo modo que o roteiro rígido para a maioria dos rituais coaduna-se com a estrutura mítica que emoldura a história de povos não ocidentais.


Entre os Gahuku-Gama, da Nova Guiné, por exemplo, os eventos disjuntivos da vida cotidiana são absorvidos mediante ritos que visam restituir a conjunção social. É assim que modulam a prática do futebol, desde a introdução deste esporte entre eles. De modo que jogam tantas partidas quanto necessárias para chegarem ao equilíbrio perfeito entre o número de vitórias entre duas equipes competidoras. O contraste com a prescrição da disjunção e a proscrição do empate entre nós é evidente e evoca inversões simétricas no interior da própria cosmologia capitalista. Vale à pena observá-las pelas lentes etnográficas de Julian Pitt-Rivers.


As touradas espanholas constituem ritos invertidos da missa católica, sugere o antropólogo britânico. Não são rituais, propriamente, mas contra-rituais. A missa celebra o amor fraterno, a paz, a mansuetude, a cooperação universal, a renúncia ao interesse pessoal em benefício do bem-estar coletivo. Tais valores se incorporam no Cristo, que se deixa imolar na cruz como testemunho de amor à humanidade, de expressão não violenta e inabalável frente ao egoísmo político e à inveja dos líderes religiosos – o que evoca o símbolo hebraico do cordeiro sacrificado em lugar do pecador.


A tourada, ao contrário, ritualiza o conflito, o combate, a ferocidade, a competição selvagem, a defesa de si por meio do assassinato de outrem. Mas não o faz sem ambiguidade. Em lugar de afirmar categórica e explicitamente estes valores anticristãos, a tourada os coloca em prática sob a rubrica dos mesmos significados católicos. O touro é imolado tal qual o cordeiro. Como Santa Verônica, o toureiro marca sua toalha com o sangue da vítima. Simula a santidade feminina no começo da performance, cingindo a cintura com a toalha à guisa de saia, para ao final exibi-la na condição de vera-icônica – imagem verdadeira, etimologia do nome que batiza a santa –, evocando assim a impressão do rosto de Jesus ensanguentado no sudário empregado por Verônica para lhe enxugar a face, no calvário.


Pitt-Rivers introduz aqui uma categoria antropológica forjada por ele e jamais ativada novamente pelos que lhe sucederam, em que pese sua potência para expressar a vida social e as ambiguidades da história cultural em qualquer lugar – a saber, o conceito de confusão. Há sentidos confusos e contraditórios que são sobrepostos na imagem do touro no decorrer do tempo e que coexistem no presente etnográfico. Como o bode, ele é também uma figura demoníaca que se confronta com a santidade interpretada pelo toureiro. Daí que seus traços invertam os do cordeiro; este é branco e aquele negro, um é destituído de chifres e o outro os tem como metonímia fundamental. E, no entanto, permanecem as dualidades: a santidade feminina de Verônica sobreposta ao assassínio masculino na figura do toureiro; o papel de vítima crística à simbologia satânica atribuídos ao touro.


Tourada e missa, pode-se concluir com Pitt-Rivers, compreendem uma unidade. A segunda celebra valores sublimes, mas difíceis de sustentar. A primeira restitui a necessária ferocidade da ordem social, muito distante do ideal de amor sublimado proposto pelo filho unigênito de Deus, encarnado entre mulheres e homens que carecem de seus atributos admiráveis. É nesse sentido, pois, que a tourada é um contra-ritual da missa. Entre a brutalidade da vida cotidiana e a sublimidade da situação ritual, é necessária a mediação de uma segunda inversão, que nada mais é que o restabelecimento contra-ritual do regime social invertido na missa.


Ora, podemos extrapolar o trabalho de Pitt-Rivers para interpretar os jogos esportivos do mundo moderno industrial como contra-rituais das religiões cristãs. Max Weber descreveu o terreno fértil que a ética protestante ofereceu para a germinação do capitalismo. O trabalho duro, a previdência e a poupança, a sobriedade, a humildade de modos, o uso laborioso do tempo teriam fornecido condições de possibilidade para a acumulação de capital. Já Boltanski e Chiapello destacaram o novo espírito do capitalismo, pós anos 1970, marcado pelo consumismo, pelo comportamento perdulário, pela mercantilização do tempo liberado do trabalho, pela intensificação dos usos distintivos dos bens de consumo conspícuo.


A tais transformações corresponderam mudanças tanto nos rituais religiosos quanto nos contra-rituais esportivos. Enquanto os cultos cristãos tradicionais e os atletas que antecederam a financeirização do esporte expressam, respectivamente atitudes de recolhimento e de ascetismo, os ritos neopentecostais e os esportes espetacularizados veiculam a autopromoção. O comportamento incondicionalmente pacífico dos primeiros rituais contrasta com a explosão violenta das emoções, nos segundos. Denominações religiosas também se opõem e competem entre si. Os times esportivos cooperam internamente e, por vezes, também externamente, conforme o jogo das afinidades e rivalidades coletivas. Ritual e contra-ritual concorrem assim de modo ambíguo, confuso e contraditório para celebrar a paz ideal e contemporizar a guerra real. Talvez este caráter incoerente das organizações humanas constitua evidência de nossa permanente incompletude evolutiva. O esporte pode, sem dúvida, promover a paz; mas em sinergia com as demais instituições sociais, em sua longuíssima marcha educacional, ainda muito distante do sonho humano da fraternidade e da justiça universal.



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