Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Qual o maior problema que o Brasil enfrenta hoje? O coronavírus? Bolsonaro? O fascismo? O obscurantismo? A estupidez coletiva? Tudo isso junto? O buraco é lamentavelmente mais em baixo!
Nosso quadro patológico se caracteriza pelo farisaísmo. A descoberta da doença coube naturalmente ao médico dos médicos. “Acautelai-vos primeiramente do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”, disse o Cristo no capítulo 12 do evangelho de Lucas.
A hipocrisia veste a roupa da dissimulação. Visa ocultar não apenas seus sintomas, mas também as condições profundas de sua etiologia. A adesão ao mal menor, perpetrado às ocultas, termina por aniquilar a faculdade humana de distinguir escalas.
De fato, o fermento tem a propriedade de confundir magnitudes, de conferir proporções monstruosas ao que se supunha pequeno. Eis porque o fermento dos fariseus não é uma metáfora da hipocrisia, mas uma propriedade dela. A lógica de fundo do fenômeno é elaborada já no início do livro Gênesis. De Adão e Eva, passando por Caim, até o mundo pré-diluviano defrontamos a descrição poética de um fenômeno antropológico jamais enfrentado pela Filosofia ocidental – a saber, a progressão exponencial do mal.
O ser humano não começa vida criminosa pelo assassinato, pela extorsão, pela usura rentista ou pela evasão de milhões de reais na direção de um paraíso fiscal. Todos iniciamos pela simples subtração de uma fruta, cujo destino era alimentar outrem. A experiência do bem e do mal (esta é a designação hebraica do famigerado fruto proibido) inicia-se invariavelmente do pequeno ao grande, do simples ao complexo. É sempre também uma ex-peri-ência – isto é, uma pequena saída, ainda sob aparente controle, mas cujas consequências são imprevistas. A árvore da experiência do bem e do mal simboliza, pois, os limites sociais à liberdade humana reconhecidos por Sartre e Kant sob forma negativa – não ajas com o outro de modo que não desejarias que agisse contigo –, mas formulados em termos positivos por Jesus: faças aos outros o que queres que te façam.
Mas o furto “inofensivo” engendra o gosto pelo jogo de luz e sombra. Rápido, o fermento da hipocrisia leveda todos os sentidos do corpo, transformando a experiência em hábito sistemático e a máscara da dissimulação em segunda pele. “Onde está Abel, teu irmão?”, pergunta Deus a Caim, depois do fratricídio. “Acaso sou guardador de meu irmão?”, responde o interpelado, já demonstrando a velocidade com que o farisaísmo se converte em autoengano. Afinal, além dos pais, quem mais poderia ser guardador do irmão mais novo?
No princípio havia um objeto doméstico caído no chão, mas como ninguém estava vendo, foi possível negligenciar a obrigação de repô-lo em seu lugar. Depois, foi a louça suja que assim permaneceu, novamente quando olhos não haviam ali. Rápido, o bolor se instalou preferencialmente nos lugares ocultos, onde podia se evadir à visão alheia. Finalmente, fermentou os olhos e demais órgãos dos sentidos; e pôde se espalhar com fartura por vasto território, porque a faculdade de reconhecê-lo havia se obstruído.
Filas de banco ou de paradas de ônibus foram furadas. Acostamentos se converteram na via da esperteza. Imensa rede de privilégios pessoais, a um só tempo capilar e continental, foi urdida mediante o método “me ajude a te ajudar”. O monumental volume de culpa dissimulada sepultou a presunção de inocência. A mídia nativa insuflou o veneno. A sociedade civil se investiu da estética dos vigilantes justiceiros. Em seguida, o próprio judiciário trocou as provas pelas convicções.
E o exercício da dissimulação do mal desenvolveu outra competência – a de simular o bem. Cantar louvores batendo palmas, em portas de igrejas – portas largas como a dos mercados –; em seguida, orar nas praças públicas, adentrar a Ágora do legislativo levando na maleta a Bíblia em lugar da Constituição Federal; depor uma presidenta honesta e prender outro igualmente idôneo, em nome de Deus; armar a população em nome de Deus; afirmar que Deus vai redimir o Brasil e matar o enteado de quatro anos; espetacularizar o processo legal contra o evidente assassino para instilar nos justiceiros civis a certeza de que presumir inocência é mi mi mi de quem defende vagabundo.
Há dois milênios, fomos alertados de que falsos profetas e falsos Messias se levantariam! Fomos aconselhados a não erguê-los à condição de ídolos! É o coletivo que os investe com a autoridade de que desfrutam no Brasil hoje.
Felizmente, há sempre um ponto em que o fermento encerra seu trabalho, mediante saturação! A progressão exponencial do bem, ao contrário, é infinita! Há menos de um ano, lembrei aqui a dinâmica virtuosa que pode nos conduzir à revolução ética, à justiça social, à democracia, à paz genuína. Ela não poderia nos ser ensinada também, senão pelo filósofo dos filósofos: o reino de Deus é como um grão de mostarda; sendo a menor das sementes, germina a maior das hortaliças; alimento multivitamínico, repleto de benefícios à vida, biófilo! Estão próximos os dias em que a germinação suplantará a fermentação e que a simulação do bem dará lugar à sua realização!
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