Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
A concepção difundida de um Brasil endemicamente corrupto, que se distingue dos demais países para o mal, constitui elemento estruturante do nosso mito de origem. É também o maior obstáculo ao desenvolvimento humano e econômico nestas terras. Construímos este pensamento mítico com a própria pesquisa historiográfica.
O artigo de Maria Fernanda Baptista Bicalho intitulado “Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime” oferece um exemplo. O leitor encontra, no trabalho desta historiadora e antropóloga da UFF, uma descrição de processos históricos que consistem, por assim dizer, em gravitar o poder estatal, da esfera municipal à federal. Trata-se de procedimentos muito conhecidos a que se convencionou dar o nome de patronagem, favor, clientelismo e dependência pessoal.
Caio Prado Jr. descreve o sentido da colonização, na esfera da distribuição, voltado para o comércio exclusivo com a metrópole, com vistas ao seu abastecimento e desenvolvimento econômico. No âmbito da produção, o Brasil colonial se caracteriza pela grande propriedade, com base na exploração massiva da mão de obra escrava. O texto de Bicalho evidencia o processo de distribuição da terra, orientado por valores e práticas do antigo regime, incorporados nas elites coloniais, caracterizadas como a “nobreza da terra”. Tais grupos privilegiados se organizam a partir de uma “visão corporativa da sociedade”, sugere a autora. O que está correto. Seguindo, no entanto, os clássicos da formação nacional, ela apresenta este quadro como uma peculiaridade da península Ibérica.
O cerne deste particularismo é a caracterização da lógica abrangente da dádiva, com seus três momentos constitutivos (dar, receber e retribuir), em termos que se revestiriam, ao longo da história brasileira, de caráter pejorativo; a saber, “economia de favores” e “clientelismo”. A descoberta do Novo Mundo possibilitaria extraordinária expansão não apenas dos domínios territoriais da coroa portuguesa, senão também de sua base social de vassalos, dada a multiplicação de terras e títulos de nobreza a distribuir, na condição de “mercês”. A monarquia portuguesa se expandia assim, simbolicamente, para os domínios ultramarinos. E com ela a “economia da mercê”, em cujas obrigações recíprocas, régias e vassalas, são interpretadas nos termos de um “círculo vicioso”.
A “nobreza da terra”, nos domínios coloniais se constituiu, em larga medida, por meio da distribuição de privilégios pela coroa. As redes de reciprocidade estruturadas em satélites sociais que, por assim dizer, gravitavam na órbita do monarca português – deitaram raízes no círculo dos escravos. Assim é que, em 1717, um conflito pontual entre um escravo da fazenda Sergipe e um capitão do mato chegou a envolver 230 indivíduos, incluindo o padre Luís Veloso, administrador do engenho, e “os mais ilustres senhores do engenho do Recôncavo”.
Ao narrar o acontecimento, Bicalho confere ênfase ao seu aspecto de evidência das relações de dependência entre a nobreza da terra e os estratos sociais subordinados, incluindo escravos. O que, entretanto, não deve surpreender senão a quem julga encontrar grande peculiaridade clientelista no antigo regime colonial português. Contra esta aparente especificidade viciosa, o material historiográfico e etnográfico disponível sugere que o poder, em suas múltiplas formas sociais conhecidas na história humana (das organizações tribais às mais variadas civilizações, e da antiguidade aos dias de hoje), se sustenta com grande regularidade em abrangentes e capilares relações de obrigação recíprocas, que atravessam todas as classes sociais. Nunca e em lugar algum as classes dominantes prescindiram da necessidade de dispensar concessões e obter serviços das classes dominadas.
O artigo também destaca a constituição, na colônia, de um “estado intermédio”, “equidistante entre a antiga nobreza e o povo mecânico”, que compreenderia indivíduos originários deste último estrato, alçados à condição de “nobreza civil ou política”, como decorrência de serviços prestados à realeza e à nobreza da terra. E, no entanto, em qualquer sociedade conhecida, a relação entre alta nobreza (ou aristocracia), de um lado, e as classes da base hierárquica, de outro, nunca é de mera segmentação dualista, mas de organização em solução de continuidade. De modo que, há sempre uma diversidade de status, acompanhados de condições econômicas correspondentes, nos “estados intermédios”, situados entre um extremo e outro.
A autora aponta para as câmaras como espaços privilegiados para o exercício do poder na colônia, em esfera municipal. Por meio delas eram conferidas não apenas as marcas de distinção nobiliárquica senão também as vias de interlocução com o rei, na metrópole. Daí que as câmaras fossem também o objeto precípuo das disputas de poder entre as facções de grupos políticos locais. A concessão dos cargos camarários por parte da coroa constitui, pois, evidência do monopólio régio das classificações sociais na colônia. E a cada mudança na escala do contínuo hierárquico, em qualquer direção, relações correspondentes de distribuição de privilégios e dependência estruturam os vínculos de clientela. Embora os estudiosos da formação nacional tenham tratado estes processos como peculiaridade brasileira e Ibérica, trata-se, contudo, apenas de caso particular de uma regularidade quase universal da experiência humana.
A seção final do artigo traz o relato de uma dinâmica fundamental para a compreensão da formação dos vínculos de reciprocidade e clientela. Trata-se do conteúdo das prestações de serviços vassalares privilegiadas pela retribuição régia. A saber, a atividade bélica, concentrada em três aspectos centrais. A defesa da monarquia, em primeiro lugar; o caráter fundador das ações militares, em segundo; o pacto constitucional entre a nobreza e a monarquia, calcado nos dois primeiros serviços, em terceiro.
Estas três dimensões se articulam em uma compreensão unificada quando consideramos que o império português foi, durante os seiscentos, o primeiro e maior império global da história. Como sugere Norbert Elais em “O processo civilizador II”, quanto mais vastos os domínios de um poder central, emanando força centrípeta, tanto mais abrangentes, diversificadas e intensas também serão as forças centrífugas, que visam à dissolução deste poder. Compreende-se, pois, que os feitos bélicos de conquista, restauração e defesa dos territórios, fornecidos à coroa a título de serviços vassalares fossem retribuídos com propriedades e títulos honoríficos dos mais apreciados. Assim, os empreendimentos militares da nobreza da terra, a um só tempo, fundadores dos domínios imperiais, preservavam-nos do assédio estrangeiro, notadamente holandês e francês, e estabeleciam um pacto constitucional com a coroa que era também fundador da nobreza da terra ela mesma.
Acredita-se, no Brasil, que as redes capilares de clientela militar, distribuídas pelo império português, constituem peculiaridade Ibérica. Mas novamente, a reciprocidade fundante destas relações é uma contrapartida da segmentaridade, sendo esta fenômeno tão regular quanto a primeira. A distribuição de retribuições reais é parte das estratégias centrípetas estruturais do poder central, descritas por Elias. Estratégias que crescem na razão da ênfase e difusão das tendências centrífugas, isto é, segmentares. O pacto constitucional entre monarquia e nobreza da terra, no exemplo português é, por conseguinte, apenas mais um caso particular de regularidades estruturais registradas, em diversos outros exemplos de relações coloniais e imperiais, pela historiografia e etnografia.
O artigo de Maria Fernanda Baptista Bicalho nos oferece, em suma, uma ilustração da suposta corrupção endêmica às relações de patronagem e clientelismo, concebidas como exclusividade brasileira, conforme sugeriram os teóricos da formação nacional – em particular, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, mas também Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre. Se a reciprocidade, cimento fundamental da vida social, como nos ensinou Marcel Mauss, e princípio integrador da vida econômica, conforme notou Karl Polanyi, deve ser interpretada, sobre o pano de fundo de um conceito abstrato de cidadania universal inventado pelo iluminismo, como clientelismo e, pior, corrupção, tais são propriedades pandêmicas da humanidade, e não endêmicas do Brasil.
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