Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
O capítulo 8 do evangelho de Lucas conta que Jesus navegou até uma terra situada diante da Galiléia, habitada pelos povos Gerasenos. Ao pisar terra firme, encontra um homem da cidade “possesso de demônios”. O versículo 27 fornece os seguintes detalhes a seu respeito: “Havia muito que andava sem roupas e não habitava em casa alguma, mas em sepulturas”.
Jesus pergunta seu nome e a resposta é surpreendente: “Legião”, porque eram muitos. Segue-se a libertação do homem, com características não menos curiosas. Os demônios rogam a Jesus que os permitam entrar em uma manada de porcos e obtêm permissão. As pessoas que apascentavam os animais fogem, quando estes se precipitam no abismo. Finalmente, os habitantes da cidade se dirigem ao local e vêem o homem sentado ao lado de Jesus, vestido e em “são juízo”. Amedrontados, os Gerasenos pedem a Jesus que deixe sua terra.
O primeiro detalhe interessante de reparar é que o comportamento daquele homem resultava de influências coletivas; agia sob as injunções de uma legião. E com base na conclusão da história parece ser razoável supor que eram as próprias inclinações da cidade que ele incorporava. A simbologia bíblica dos espíritos demoníacos não se refere, com efeito, senão à oposição que os instintos primitivos de nossa condição animal exercem contra o processo de elevação espiritual. Este sentido fica mais claro no sinônimo “diabo”, que significa opositor. O Apocalipse de João parece endossar esta interpretação ao atribuir à figura o número 666, tomando-a como uma grande besta – isto é, um animal feroz e irracional. No contexto da numerologia hebraica, 6 representa o ser humano, que teria sido criado no sexto dia da semana cosmogônica.
A estrutura literária bíblica se caracteriza pela metáfora, pela metonímia, pela sinédoque, articuladas em linguagem poética de múltiplos e espiralados sentidos. Muito distinta ela é, portanto, do vocabulário objetivista da ciência contemporânea. Admite-se, no entanto, no terreno teológico da fé, que os textos sagrados podem incluir antecipações científicas, porquanto inspirados por esferas superiores. De modo que o número da besta poderia se referir ainda à estrutura bioquímica da condição animal, baseada no carbono – com 6 prótons, 6 elétrons, 6 nêutrons. Ora, são comportamentos animalescos que o texto atribui ao endemoniado geraseno. Não vestia roupas, não habitava em casas, mas em sepulcros. Em outras palavras, tratava-se de corpo em morte espiritual, percorrendo uma trajetória simétrica e inversa à da Filosofia da História hegeliana; involuindo em sua Fenomenologia do Espírito.
O endemoniado expressava a besta coletiva dos Gerasenos, levada ao paroxismo. Os animais atirados no abismo prenunciam seu destino, conforme as inclinações que manifestam. Curado por Jesus, seu ex-representante recobra o juízo, a razão, a capacidade de buscar a verdade sob a aparência superficial das coisas e por trás do véu do senso comum no qual foi socializado. Mas seus conterrâneos não conseguem defrontar a verdade. A libertação de um dos seus lhes é insuportável! Invadidos pelo medo, imploram que Jesus se retire, em identidade de atitude com os demônios expulsos, que fogem apavorados.
O empuxo à condição animal é bem descrito por Freud em sua formulação do “princípio de prazer”. Em estado inercial o organismo busca o prazer e foge da dor. O meio ambiente, no entanto, exerce resistência à satisfação do princípio de prazer, que não apenas inviabiliza sua saciedade imediata quanto, por vezes, impõe a destruição do animal que a persegue de modo inconsequente. Disto temos tido tristes ilustrações com milhares de mortes diárias por Covid.
As injunções do mundo impõem ao organismo a formação de faculdades mais afinadas com as condições de vida sob as quais estão submetidos. Trata-se do “princípio de realidade”, que determina a suspensão do prazer em nome da sobrevivência. É este segundo princípio do suceder psíquico que preside o exercício da razão, o desenvolvimento da cognição, da memória, a formação dos órgãos dos sentidos, da percepção, a capacidade de processamento cerebral dos dados registrados pelos recursos aferentes do corpo. Trata-se, em suma, de um conjunto de faculdades humanas que permitem a elaboração de interpretações sobre o mundo, de modo objetivo, para fins adaptativos e evolutivos.
O princípio de realidade permite, com o tempo, a criação de um sistema de seguridade para a espécie, garantindo-lhe o exercício menos arriscado do princípio de prazer. A cada geração, pois, o empuxo selvagem à perseguição do prazer e à fuga da dor se estabelece em novo patamar, sobre o estado da arte da tecnologia de segurança. Este processo exige níveis também mais sofisticados de desenvolvimento do princípio de realidade, em escalas mais complexas de sublimação dos impulsos animais. Isto se explica porque o estado inercial do princípio de prazer se reveste de mais eficiente economia de esforço. Mais ainda, a mercadorização desta tecnologia de segurança se associa à produção discursiva da publicidade, que se estrutura com base no sistema orgânico de recompensa responsável pela produção do vício. Recobrar o juízo, expulsar a besta primitiva; em suma, adentrar a maioridade do exercício da razão é tarefa histórica cada vez mais desafiadora!
"O medo à liberdade” é título de um livro seminal do psicanalista marxista Erich Fromm. Larga parcela da “Pedagogia do Oprimido” é empregada por Paulo Freire com o intuito de desenvolver o fenômeno descrito pelo pensador alemão, à luz das reações de muitos de seus educandos, tão logo emergidos à consciência crítica. Uma descrença negacionista da verdade se mistura ao medo de se afastar dos concidadãos de trevas pelos quais se nutre afeição, entre muitos daqueles que rompem os grilhões das cavernas platônicas ou das sepulturas bíblicas!
Uma estrutura social polarizada se configura com base no medo negacionista à liberdade. Os grupos sociais que dispõem de condições objetivas e subjetivas para o exercício da razão caem na tentação de julgar a si mesmos como proprietários da verdade. Ao mesmo tempo, a vasta parcela humana são sonegadas estas condições. De um lado, o grupo dos emancipados do iluminismo; de outro, os que permanecem na menoridade kantiana. Transpor o limiar desta situação àquela é percurso amedrontador! Qualquer um que se recorde de seus primeiros dias sob o exercício do pensamento crítico, lembrar-se-á da sensação de estar traindo os companheiros de caverna. O medo de perder o amor do próprio grupo é sentimento poderoso, que pode paralisar! Equivale talvez ao temor de cair da borda de uma Terra plana no espaço infinito, como decorrência do abandono da província natal.
Há ainda outro aspecto interessante desta passagem do evangelho. Lucas nos conta que Jesus aquiesceu ao pedido dos Gerasenos, deixando sua terra. Com isso nos ensinou o Divino Mestre que impor a verdade a alguém é tarefa impossível, mesmo para o Unigênito de Deus! Sob condições de negacionismo, apenas o silêncio obsequioso constitui recurso pedagógico eficaz. Esta atitude não é pouca coisa! Como insistia Paulo Freire, ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho; os seres humanos se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. O que lembra também a formulação de Jaques Ranciére: entre educação e imposição de discursos existe a mesma distância que separa a democracia do autoritarismo.
A força dos argumentos dispensa o argumento da força. A escalada brasileira de violência em torno das chamadas “disputas de narrativa” é, por conseguinte, não apenas infrutífera; ela é a principal responsável pelo obscurantismo, na medida em que inviabiliza aquela “comunhão gnosiológica” freireana. Quem enuncia uma verdade está dispensado de impô-la a quem quer que seja; a verdade se impõe por si. Mesmo à custa de longo tempo e, por vezes, milhares de vidas precipitadas no abismo!
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