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O QUE A ANTROPOLOGIA BIOLÓGICA DIZ SOBRE A DIGNIDADE HUMANA?

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


O estudo da pré-história constitui matéria fascinante que a Historiografia compartilha com a Arqueologia, a Antropologia, a Paleontologia, a Biologia evolutiva, a Genética, a Química. A escassez de fontes e a enorme distância temporal que nos separa do paleolítico impõem a pesquisa interdisciplinar; o que torna instigante o estudo destes primórdios da história humana. Quanto mais reduzidos os recursos de trabalho, tanto mais férteis precisam ser as mentes. Eis porque os especialistas de variadas ciências que se debruçam sobre o passado remotíssimo cooperam entre si, ao passo que o pretérito mais próximo faz-se objeto de contendas a encobrir disputas de poder entre áreas acadêmicas que se rivalizam.


Paradoxalmente, pois, o caráter contestado do conhecimento científico, para o bem e para o mal, cresce na razão direta das fontes disponíveis. Enquanto os períodos que se seguem à chegada da escrita em diversas regiões da África subsaariana são objeto de narrativas históricas em conflito – como é o caso do evolucionismo social que coloca a Europa no vértice da pirâmide evolutiva, de um lado, e as múltiplas escolas historiográficas fundadas em universidades das capitais africanas, constitutivas dos modelos de “pirâmide invertida”, nos termos da historiadora Andrea Morzano, de outro –, a reconstituição histórica dos tempos que a precederam se caracteriza pela incerteza que deveria orientar toda atividade científica. Conquanto nem por isso desprovidas de divergências fundadas em cosmologias políticas distintas, as pesquisas pré-históricas impõem certa humildade acadêmica que facilita o diálogo entre disciplinas.


O estudo da passagem do paleolítico inferior ao paleolítico médio, bem como a difusão das técnicas industriais que caracterizam as distinções entre suas respectivas ferramentas, oferece um exemplo profícuo da cooperação interdisciplinar. Técnicas de datação desenvolvidas pela Química são imprescindíveis aqui. A elas se somam o estudo genômico dos fósseis encontrados, sua comparação morfológica pela Biologia, o cotejamento das técnicas empregadas na produção de ferramentas pela Arqueologia, a formulação conjectural de escalas evolutivas pela Filogenética e pela Antropologia biológica, o estudo estrutural destes resquícios de cultura material pela Antropologia social, a análise estética das figuras rupestres – que remontam a 45.500 anos. Sem tal trabalho coletivo seria difícil inferir minimamente qualquer proposição articulada acerca da pré-história.


Por outro lado, a dificuldade evidente de reconstituição detalhada dos processos sociais subjacentes aos primórdios do Homo Sapiens e de seus ancestrais imediatos, como o Homo Erectus e o Homo Habilis, abrem espaço a conjecturas que reúnem evidências conforme pressupostos culturais de cada pesquisador. As descobertas recentíssimas dos indícios da presença de artefatos acheulianos (característicos do paleolítico inferior) há cerca de 1.300.000 anos no Marrocos ilustram as polêmicas que cercam este campo de pesquisa. Aproximando-se da datação da indústria acheuliana no sul do continente africano – cerca de 1.600.000 anos –, bem como de sua costa leste – 1.800.000 anos – a coleção acheuliana marroquina sugere que a difusão da indústria que caracteriza o paleolítico inferior foi bastante precoce; o que lança luz também sobre o debate acerca da difusão da espécie humana para fora do continente africano. Se em um espaço temporal de 500.000 anos foi possível que a técnica acheuliana chegasse ao Marrocos, nada autoriza a duvidar que se difundisse para a Índia, por exemplo, no decurso do mesmo intervalo. Com efeito, a indústria paleolítica inferior chegou ao território da Índia por volta de 1.700.000 anos; de modo que tais evidências remontam mesmo a período anterior ao dos indícios mencionados no sul africano – como vimos, datados de 1.600.000 anos.


Ora se a velocidade de difusão da indústria acheuliana entre leste africano e Índia conta 100.000, que dizer da difusão das técnicas características do paleolítico médio? Pode-se acreditar que uma vez abertas as rotas migratórias de África para alhures, Índia, por exemplo, teria existido ulteriormente períodos de insulamento entre tais regiões do globo? Vejamos.


A passagem do paleolítico inferior ao médio se caracteriza pela substituição do machado acheuliano pela técnica mais sofisticada denominada Levallois. Esta última teria se desenvolvido há cerca de 400.000 anos, em solo africano. Descobertas de 2018, contudo, sugerem a presença da indústria Levallois na Índia, já por volta de 385.000 anos atrás. Ora, estamos falando aqui de cerca de cinco mil anos a separar o artefato Levallois mais antigo conhecido em África de seu homólogo na Índia. É, portanto, surpreendente que se possa crer ser este um período insuficiente para a migração de populações africanas, na direção da Índia, de posse da técnica Levallois. De vez que a difusão da indústria paleolítica inferior para o mesmo território asiático testifica a existência de rotas migratórias muito mais antigas.


Há mais. Andrea Morzano menciona ainda “o mais amplo estudo do DNA realizado na África”, cujos achados sugerem ser aquele continente o local que abriga a “maior diversidade genética do planeta”. Sabe-se também que a semelhança genética entre humanos e os grandes primatas contemporâneos é da ordem de 99,4%. Ora, se foram necessários cerca de 2.400.000 anos para a diferenciação entre a espécie Australopithecus (datada de 4.200.000) e o Homo Erectus (cuja datação é estabelecida, dentre outras evidências, pelo advento da indústria acheuliana,1.800.000 anos, como vimos), é razoável supor que a diversidade genética registrada hoje entre o Homo Sapiens sugere a vigência remotíssima de intercâmbios regulares entre grupos humanos espalhados por vastas áreas do planeta. E quanto mais diverso o genoma, tanto mais precocemente deve ter sido a capacidade migratória dos povos. De modo que a maior diversidade genética do continente africano sugere igualmente expertise mais antiga de mobilidade geográfica.


É, por outro lado, estimulante refletir sobre a hipótese de desenvolvimento simultâneo, em múltiplas partes do planeta, das primeiras habilidades industriais do Homo Erectus, do Homo Habilis e do Homo Sapiens – seja no paleolítico inferior, médio ou superior. Aqui a investigação interdisciplinar pode se beneficiar da antropologia estrutural, desenvolvida por Claude Lévi-Strauss. Em uma de suas obras o antropólogo francês emprega como epígrafe um axioma de Edward Tylor segundo o qual se há leis naturais elas operam em toda parte. A ironia sofisticada de Lévi-Strauss consiste em tomar uma ideia formulada com propósitos colonialistas – que conjecturavam a evolução das civilizações humanas de modo idêntico à evolução biológica das espécies – para propor um modelo teórico com implicações políticas inversas – a saber, que os povos não evoluem a partir de uma origem comum, mais arcaica e rudimentar, na direção de estados superiores (em cujo vértice da evolução estaria a Europa). Ao contrário, a natureza humana seria a mesma em qualquer parte do mundo, operando segundo os mesmos princípios e produzindo modos de vida equivalentes em complexidade estrutural.


Ampliando a escala de cooperação interdisciplinar de nossa reflexão, podemos hoje, com o conhecimento disponível nos campos da Física e da Biologia, reinterpretar os postulados estruturalistas sob nova luz. A cibernética dos sistemas autopoiéticos desenvolvida pelos neurobiólogos Humberto Maturana e Francisco Varela (2001) registra regularidades e homologias entre as dinâmicas sistêmicas de escalas microscópicas e macroscópicas que sugerem a vigência de leis invariáveis em meio à diversidade de fenômenos – atualizando assim, em nível mais abrangente, o postulado levistraussiano segundo o qual a diferença constitui um caso particular da semelhança. Para Maturana e Varela a interação entre partículas subatômicas, no átomo, obedece a forças de atração e repulsão que correspondem a processos de diferenciação orgânica nas células, à modularidade dos órgãos nos corpos vegetais e animais, à diferenciação filogenética das espécies e, finalmente, à organização social de muitíssimas espécies animais. Neste último caso, os cientistas chilenos também destacam processos homólogos de comunicação entre a trofolaxes (a comunicação hormonal dos insetos sociais), a comunicação de base química e vocal entre pássaros e caninos, a comunicação gestual, facial e vocal entre primatas e o estado de grande complexidade comunicativa, de base audiovisual, que vigora no Homo Sapiens. Esta reinterpretação filogenética de Maturana e Varela sugere que as leis estruturais de que nos fala Lévi-Strauss podem ter um lastro biológico profundo.


É, por conseguinte, razoável supor que tanto a tecnologia das ferramentas paleolíticas, em seus múltiplos estágios, quanto a pintura e, mais tarde, a escrita, a poesia, a literatura e o conjunto das demais artes e ciências, possam ter evoluído a partir de diversas linhas paralelas e coexistentes, obedecendo a lógicas estruturais inscritas na biologia. A natureza se encarregaria assim de enriquecer a cultura humana por meio dos encontros de alteridades dotadas de estatuto cognitivo e estético simétrico. Mais ainda, a plausibilidade desta hipótese – tão legítima quanto o postulado difusionista – oferece implicações éticas e políticas salutares. É prudente, nesse sentido, imaginar o pressuposto de difusão a partir de uma origem única, na África, como a sobrevivência do evolucionismo social, que aloca as formas elementares da vida humana naquele continente, ao passo que reserva para a Europa o vértice da pirâmide evolutiva. E, no entanto, mais que inverter a pirâmide, como fizeram as primeiras gerações da historiografia dos países africanos, a dissolução de qualquer modelo evolutivo piramidal pela admissão de uma mesma natureza humana, conforme a teoria de Lévi-Strauss, talvez seja a condição de possibilidade para o advento de valores éticos superiores a reger a história doravante. Quais sejam, aqueles fundamentados no princípio da dignidade universal, que desconhece qualquer critério objetivo para julgar a prodigiosa diversidade cultural que caracteriza nossa espécie em termos hierárquicos de superioridade ou inferioridade. Esta lição da Antropologia biológica tem potencial para promover a saúde afetiva e social de grande parte dos brasileiros hoje; os quais, ao contrário de seus irmãos pré-históricos, insulam-se em suas seitas e facções políticas à guisa de vértice da pirâmide evolutiva.


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