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O QUE O ESPORTE INSPIRA À EDUCAÇÃO*

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


A segmentaridade que organiza o esporte em equipes rivais (e, com menor intensidade a depender do objetivo comum, também em aliadas) opera igualmente nas demais esferas da vida social. Em toda parte, segmentos sociais mutuamente antipáticos e simpáticos se formam – na política, na economia, na ciência, na religião, no lazer, na educação. Partidos políticos, clusters produtivos e competidores por fatias de mercado, seitas e denominações religiosas, clubes, classes escolares compreendem, respectivamente as unidades sociais que se formam mediante a vigência da prática e do pensamento segmentar humano. No caso específico que nos interessa aqui – a educação – este princípio antropológico oferece recursos heurísticos para a organização do currículo e do cotidiano escolar.

Um time esportivo é um segmento social elementar e um jogo compreende uma equação simplificada da vida social. O primeiro ensinamento relevante que se pode depreender da observação deste laboratório básico é que para competir com um rival é incontornável cooperar internamente. De fato, no ano de 2018 a equipe do pesquisador Satyam Mukherjee publicou na revista Nature evidências de que equipes dotadas de coesão social mais robusta têm maiores chances de vitória em competições esportivas. Na conclusão do artigo os autores argumentam que seus achados provavelmente se aplicam ao treinamento de grupos sociais em outras esferas – por exemplo, nas empresas e nas escolas. O insight é valioso! Para que uma classe escolar obtenha êxito acadêmico, forçoso é lançar mão dos recursos disponíveis para fomentar a cooperação e a coesão social entre os estudantes que a constituem.

O princípio da segmentaridade pode conferir à intencionalidade pedagógica a luz necessária à iluminação do curriculum que conduz à cooperação no interior de uma turma escolar. Estudando as condições de possibilidade de manutenção da coesão social, o antropólogo Gregory Bateson apontou para duas variáveis intervenientes: I- a presença de um adversário externo ao grupo; e II- A celebração periódica de rituais de confirmação internos. Ora, em um nível de observação mais superficial, o esporte oferece simultaneamente estas duas condições. Os jogos com outras equipes oferecem a um só tempo o ensejo de confrontar um adversário externo, de um lado, e de celebrar a confirmação da unidade interna, de outro.


O fomento da competição no interior de uma sala de aula conduz ao declínio do rendimento acadêmico, argumentam Stephen Garcia, Avishalom Tor e Tyrone Schiff (psicólogos sociais da Universidade de Notre Dame). O argumento de Bateson, no entanto, sugere que fomentar a competição entre duas turmas equivalentes pode concorrer para o fortalecimento da coesão interna de cada uma delas e, por conseguinte, para o incremento do rendimento acadêmico – caso a hipótese bastante fundamentada da equipe de Mukherjee esteja correta. Mimetizando ainda a dinâmica social da disputa esportiva, seria necessário estruturar um calendário escolar perpassado por eventos regulares de culminância do trabalho pedagógico, em que classes equivalentes tivessem a oportunidade de se confrontar, celebrando sua coesão interna em olimpíadas de Química, Física, Biologia, Matemática, Gramática, Geografia, História, Sociologia, Filosofia, festivais de dança, literários, teatrais, musicais e, naturalmente, esportivos.


Como a relação entre rivalidade e afinidade é contextual, relacional e deslizante, o melhor caminho para afastar as hostilidades indesejadas é ampliar a escala dos eventos, passando da competição entre classes de uma escola à sua cooperação para fins de confronto com outra escola. Desta à cooperação entre escolas de bairros, de municípios, estados, países. No limite, o dilema da coesão social é substituir um adversário externo por um objetivo comum. E o tempero desta necessidade é, em todas as escalas, o fair play; vale dizer, a intencionalidade educacional que visa conferir diplomacia à competição.


O nível de análise das considerações feitas até aqui é, contudo, o mais superficial. Para que o rendimento do trabalho em sala de aula possa se desenvolver mediante cooperação importa estimular o fortalecimento das afinidades internas. Conforme os princípios interpretativos aqui adotados, é necessário observar em profundidade o que sugere a ciência tática acerca das interações ideais entre os atletas de um mesmo time. A estratégia perfeita é aquela que aproveita o potencial de cada um deles neutralizando pari passu suas respectivas fragilidades. Mais ainda, as habilidades e competências individuais precisam integrar um ecossistema virtuoso que as articule em uma estrutura de complementaridade e fertilização recíproca.


Outro conceito basilar da Antropologia, tão universal quanto o da segmentaridade, comparece aqui em nosso socorro analítico – qual seja, o princípio da reciprocidade. Trata-se de uma lógica triádica, descrita inicialmente no “Ensaio sobre a dádiva” de Marcel Mauss, que consiste no circuito que une os atos de dar, receber, retribuir. Ora, uma vez mais defrontamos nos esportes a dinâmica elementar desta lógica. Qualquer pessoa que tenha jogado três partidas sucessivas de futebol ou basquete em um mesmo time sabe que receberá tanto mais passes de um determinado companheiro de equipe quanto mais lhe tenha por sua vez passado a bola. O mesmo vale para o lutador de Jiu-Jitsu que treinar por algum tempo na mesma equipe; quanto mais treinos fizer com um determinado colega de tatame, dialogando sobre as vantagens e desvantagens de cada movimento, tanto mais auxílio receberá deste seu parceiro.


Há mais na lógica da dádiva. Ela é inaugurada com o ato da doação. Não exige do outro; antes oferece o exemplo concreto. A ele se segue a emulação. O recebimento de uma gentileza constrange positivamente quem recebeu à retribuição. E mais forte que o constrangimento será a admiração decorrente de uma doação excelente. Um passe perfeito e bonito, um movimento de Jiu-Jitsu eficaz e plástico serão objeto de maravilhamento. Estética e eficiência também se fertilizam reciprocamente. E o hábito coletivo que decorre deste encantamento constrangedor, por assim dizer, funda a coesão robusta. Isso nos ensina que a educação não se faz com exortações verbais, mas com atos desejáveis. “Seja a mudança que você quer no mundo”, consoante à formulação atribuída a Mahatma Gandhi.


Dar, receber, retribuir. A lógica da dádiva é uma receita de fecundação de afinidades e de mapeamento prático das formas de tornar complementares competências e habilidades individuais. Disto ao rendimento acadêmico há continuidade lógica. Se o cotidiano escolar e especialmente as relações entre turmas se estruturarem com base no princípio da reciprocidade, a escola será terreno fértil à germinação de um prodigioso associativismo estudantil. E formar as novas gerações sobre bases associativistas, no esporte, na escola, nas artes, no lazer, constitui uma primeira e incontornável etapa para o desenvolvimento de uma economia associativista, protagonizada por todos e por cada um. Mas isso é tema para outro dia.

* Reconhecer a contribuição valiosa das gerações precedentes para a nossa formação é etapa fundamental do circuito triádico da reciprocidade. O título deste texto é uma homenagem singela à obra seminal de Mauro Betti, em que se destaca o artigo "O que a semiótica inspira ao ensino da Educação Física", lembrado aqui em paráfrase invertida.

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