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O QUE O FIM DO OXIGÊNIO EM MANAUS DIZ SOBRE O BRASIL?

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


Antes do coronavírus a necessidade de contato social era vivida de modo equivalente à necessidade de respirar. Nos dois casos, não se prestava qualquer atenção aos fatos, por vezes admitidos implicitamente como nulos para pensar a qualidade de vida. À gratuidade não se costuma mesmo conferir valor, no terreno dos negócios humanos. De fato, do ponto de vista de nossa espécie, ela é a própria antítese do valor.


Georg Simmel, sociólogo alemão, sugeriu que as coisas são tanto mais valiosas quanto maiores dificuldades se apresentem para sua aquisição. Nada incompatível, portanto, com a teoria liberal clássica da regulação dos preços conforme a razão oferta/demanda. Até pouco tempo atrás, o oxigênio estava disponível para todos. Mesmo nos casos graves de doença pulmonar, estava lá o SUS universalizando acesso aos respiradores. O mesmo se pode dizer da interação social. Era, sem dúvida, reduzido o número de pessoas que se viam inviabilizadas de cruzar a porta de casa e entabular conversa com outrem, caso o desejasse.


O livre acesso à conversação e ao oxigênio parece ter nos bastado um dia. Até o ano de 2013, não se fazia necessário muito mais que isso. A satisfação do brasileiro com a própria vida era das mais elevadas do planeta, conforme se pode ver no gráfico abaixo, produzido por Angus Deaton naquele ano. O diâmetro dos círculos corresponde à população de cada país, situado na confluência entre autoavaliação da vida (eixo y, vertical) e PIB per capta (eixo x, horizontal) – variáveis, como se vê, não correlacionadas.



Os cerca de duzentos óbitos em Manaus, registrados no dia 13/01, evidenciam que o oxigênio pode escassear, do mesmo modo como as oportunidades de interação social, há quase um ano. Na ocasião, não havia oxigênio em nenhum dos hospitais da capital amazonense. Profissionais de saúde procediam à ventilação mecânica para manter pessoas respirando, enquanto outras, no mesmo quarto, imploravam por ar! Permitir que isto aconteça em um país com cerca de 350 bilhões de dólares em reservas é converter por omissão hospitais em câmaras de gás! Trata-se do resultado de escolhas coletivas que incluem o atual governo, mas não apenas ele.


Muito antes de Bolsonaro o Brasil optou, à esquerda e à direita, por padrões viciados e insaciáveis de consumismo. O slogan da campanha de Dilma à reeleição, em 2014, era “Mais mudanças”. Expressão eufemística! A nação brasileira pouco se importava então com robustez da cidadania e vitalidade do espaço público; queria mais e mais propriedade de bens de consumo privados. O egoísmo que daí decorreu, fez com que o país deslizasse da satisfação com a própria vida, registrada no gráfico, à guerra odienta de todos contra todos – do que a violência no trânsito oferece o melhor termômetro.


Este clima elegeu um presidente que afirmara ser necessário matar uns trinta mil; sob sua gestão, apoiada por mais de 60% da população, a pandemia já ceifou sete vezes mais vidas. Não se trata, pois, do governo individualmente, mas do ressentimento coletivo de um povo. No mesmo dia em que assistimos às cenas dantescas em Manaus, vi um gerente afirmar, inflamado de ódio, que não queria ver nenhum funcionário trabalhando de máscara perto dele.


Nosso antropocentrismo nos sugere que o peixe constitui um ser inferior por ignorar que vive na água, ao passo que nós temos consciência de estar imersos em oxigênio e dele necessitar. E, no entanto, não consta nos anais da Biologia marinha que qualquer deles tenha adoecido por problemas de saúde mental ou convertido os mares em território de guerra. De nossa parte, talvez encontrássemos maior contentamento em poder respirar oxigênio se houvessem meios de privatizá-lo. E tanto melhor seria se nossos respiradores individuais pudessem exibir belas insígnias de distinção social.


Afinal não é isso que estamos fazendo também com as relações sociais? Para que servem os camarotes VIP, os conjuntos habitacionais de luxo e demais clausuras fortificadas que constituem o que Christian Dunker denomina “vida em forma de condomínio” senão para garantir interações de griffe, por assim dizer – o que não é mais que um modo sofisticado de se referir à exclusão dos indesejáveis?


A felicidade do Brasil, até 2013, decorria do usufruto coletivo, no espaço público, do que a vida nos dá em abundância! Oxigênio, Sol, florestas, águas dos rios e dos mares. Interações sociais, práticas coletivas de lazer, festa. Sociabilidade gratuita, para lembrar uma formulação de Simmel indispensável à compreensão da natureza humana que aqui costumávamos realizar.


Por outro lado, se olharmos com atenção, veremos que todos os mecanismos de corrosão de nação brasileira nada mais são que o resultado do cercamento; da interrupção dos fluxos que costumavam confluir no espaço público. Cerca-se o círculo do convívio social, os mananciais de água, as terras indígenas, confinam-se animais em gaiolas que sequer comportam seus corpos e às quais apenas com muita leviandade pode-se chamar viveiros. Divide-se a nação entre bons e maus. O oxigênio era o último bastião de resistência contra o empuxo humano à produção de escassez social, em meio à abundância da natureza. Que a morte dos mártires de Manaus nos deem olhos de ver para lembrar a felicidade esquecida sob o véu dos antivalores do egoísmo e da privatização da vida!


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