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O QUE O RUGBI NEOZELANDÊS DIZ SOBRE AS NOSSAS MISÉRIAS

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias

Cleber Dias


A homenagem da seleção neozelandesa de rúgbi a Maradona causou embaraço. Antes do início de uma partida contra a Argentina, por iniciativa dos próprios neozelandeses, o número 10 e o nome de Maradona foram estampados em uma camisa da seleção daquele país, que foi então cerimonialmente posta no centro do campo, contrariando a liturgia que proíbe leva-la ao chão. Os neozelandeses sabiam que Maradona era tratado como um Deus pelo povo argentino, ao mesmo tempo em que sabiam que os deuses de um povo devem ser tratados com solenidade e reverência.

Logo os jogadores neozelandeses começaram a dançar a famosa haka, a coreografia ritual Maori, que apesar de bastante assustadora, é também uma forma de demonstração de respeito, não por acaso realizada em ocasiões como casamentos ou funerais. Durante a dança, os jogadores cantam, ou melhor, gritam com enorme vigor em te reo, a língua Maori: “É a morte! É a morte! É a vida! É a vida! Esse é o homem feroz e poderoso que fez com que o sol brilhasse de novo para mim. Suba a escada! Suba até o topo! O sol brilha! Ahhhh!”.



O estádio lotado assistiu a tudo em silêncio. Os jogadores argentinos, por outro lado, limitaram-se a usar uma discreta faixa de luto em suas camisas e nada mais.


A desproporcionalidade das homenagens revela diferenças mais profundas sobre as sociedades argentina e neozelandesa. Ao criticar a postura dos jogadores argentinos, o jornalista Alejandro Bercovich captou sinteticamente o fundamento do que acontecera no estádio: “essa alienação diante do que atravessou o país”, ele escreveu no Twiter, “é uma cópia carbono da indiferença da elite diante de toda a penúria popular".


A história da Nova Zelândia, como toda história colonial, é o resumo de massacres e explorações dos povos nativos. Depois do predomínio do chamado “humanismo imperial”, período em que havia indisposição política na Grã-Bretanha em manter as velhas estratégias de dominação militar nas colônias, os ventos mudaram. Parte da elite britânica mostrou crescente impaciência com a noção de que tratamento justo e digno deveria ser oferecido a povos nativos. Sob o pretexto fornecido por velhos preconceitos raciais, que tratavam povos nativos como bárbaros e selvagens, as longas e difíceis tentativas de negociação diplomática com os Chefes Maoris deram lugar às canhoneiras. Os combates nos campos e baías da Nova Zelândia em princípios da década de 1860, com o emprego de mais de 20 mil soldados britânicos, inauguraram as chamadas “guerras coloniais”, onde não havia espaço para rendição e a aniquilação total era a única alternativa.


Em algum momento, no entanto, as elites neozelandesas se convenceram de que, para prosperar como sociedade, precisariam assimilar esses grupos como parte legítima da nação. Com isso, em um longo e difícil processo, cheio de idas e vindas e que segue até hoje com conflitos e imperfeições, os símbolos dos povos nativos foram afinal assimilados como parte fundamental da simbologia nacional. Embora os Maori sejam atualmente apenas 15% da população do país, o te reo foi incorporado como um dos idiomas oficiais da Nova Zelândia. Entre outras coisas, uma parcela dos assentos do parlamento neozelandês é reservada para políticos a serem eleitos única e exclusivamente pelo voto de cidadãos Maori.


A seleção de rúgbi é uma parte fundamental dessa engrenagem, atuando simbolicamente como representação arquetípica de uma nação que decidiu imaginar a si mesma como multiétnica, solidária e cooperativa. A equipe de rúgbi do país, já classificada metaforicamente por sociológos e historiadores neozelandeses como a maior religião do país, veste uniforme preto e é chamada de All Blacks. A coreografia executada pelos jogadores antes do início das partidas é de origem Maori, assim como a língua do cântico que a acompanha. Descendentes de Maori e de europeus, brancos e negros, jogam lado a lado na equipe.


O ideal de nacionalidade representado nisso tudo, como é evidente, é o da integração das diferentes etnias que compõem o país, em busca de uma coesão colaborativa capaz de gerar a vitória. Tutira Mai, a canção folclórica ensinada em todas as escolas neozelandesas e adotada pela torcida do All Blacks nos estádios de rúgbi, fala, em bom te reo, de união e trabalho cooperativo. “Cada um de nós está unido / Todos nós, todos nós / Fiquem juntos / Alinhem-se em fila / Pense como um / Atue como um / Busque conhecimento e ame aos outros / Todo mundo”.



Assim é a Nova Zelândia – ou pelo menos a forma com que eles imaginam a si mesmos.


Já a Argentina está na América Latina e nós sabemos como é a América Latina. O futebol, o esporte mais popular da Argentina, também foi historicamente mobilizado na tentativa de se construir um veículo de identificação emocional entre todos os argentinos. No entanto, uma parte das elites locais, embora aprecie também o futebol, sempre preferiu manter certa distância desses símbolos.


O rúgbi esteve entre as atividades privilegiadas no esforço das elites argentinas criarem para si esferas separadas de sociabilidade; tudo para evitar o convívio com outras classes sociais, no que lhes parecia repulsivo e inaceitável. Jogadores de rúgbi de clubes de elite da Argentina relatavam mesmo sentirem desconforto com a presença plebeia de Maradona nos camarotes e tribunas de honra das partidas dos Puma, conforme registraram já os antropólogos Sebastián Fuentes e Daniel Guinness.


Segundo a visão desses rugbers, Maradona representava, em carne e osso, um conjunto de valores que eles não julgavam apropriados serem elevados à condição de símbolos da nação. Ao invés do ímpeto passional e explosivo de personagens com origens sociais como as de Maradona, prefeririam o comedimento parcimonioso de “pessoas de classe”, como eles próprios. Não bastasse tamanha antipatia, o futebol e várias outras atividades de grande apelo popular foram e são ainda usualmente tratadas como algo bárbaro e ignorante, tal como os seus entusiastas mais apaixonados; um mero ópio do povo que desvia atenção de assuntos mais relevantes e desperdiça recursos e energias que poderiam ser utilizadas de maneira mais proveitosa.


Um país cujo modo de imaginação de si mesmo trata ao seu próprio povo com tamanho desdém tenderá a estar condenado a derrotas, tanto sociais quanto esportivas. Os esportes, com efeito, refletem como um espelho esses dramas sociais mais profundos.


Se os campos esportivos são de fato como um espelho do sucesso ou do fracasso social de uma nação, a imagem da Argentina é horrenda, no que pode, claro, ser estendido a outros países latino-americanos, nosotros incluídos. Conforme escrevera já Wecisley Ribeiro neste portal, "o trabalho social produz excedentes de riqueza que resultam da cooperação". Em outras palavras, a cooperação é sempre melhor e por isso sempre vence. Não por acaso, o ideal multiétnico, solidário e cooperativo da Nova Zelândia resultou em um país desenvolvido. Enquanto isso, o ideal segregacionista e hostil ao próprio povo da Argentina resultou em um país cuja economia é caótica e mostra-se incapaz de oferecer oportunidades de desenvolvimento pessoal pleno ao conjunto da população.


Nos campos esportivos, coerentemente e como ilustração exemplar da força da cooperação e da solidariedade, a partida em que os neozelandeses prestaram aquela sensível homenagem à Maradona terminou com o placar de 38 a 0, e eu nem preciso dizer quem fez 38 pontos e quem não fez nenhum. “Cada um de nós está unido / Todos nós, todos nós / Fiquem juntos / Alinhem-se em fila / Pense como um / Atue como um / Busque conhecimento e ame aos outros / Todo mundo”.

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