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Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Chegou recentemente diante de meus olhos um texto redigido em 2013 pelo psicanalista italiano, Contardo Calligaris. Comentando a obra de Hannah Arendt, sobre a qual redigiu sua tese de doutorado, o autor nos oferece uma chave para abrir a porta donde provém a intolerância que marca o Brasil de 2021. Não se trata de intolerância meramente política ou religiosa, mas político-religiosa, conforme se depreende do texto de Cleber Dias, publicado aqui.
Calligaris evoca o julgamento de Adolf Eichmann, tenente-coronel responsável pela logística do genocídio nazista. Comentando o relato de Arendt, retoma o clássico contraste identificado pela filósofa judaico-alemã entre a escala monstruosa dos crimes perpetrados por Eichmann, de um lado, e sua mediocridade intelectual, de outro. Como um sujeito de faculdades cognitivas medianas, incapaz de compreender a gravidade de seus atos, argumentando cumprir ordens, abrindo mão da responsabilidade de tomar suas próprias decisões com base no exercício livre da razão; como, indaga Arendt, este sujeito pôde ser tão eficiente na condição de elo fundamental do extermínio?
Calligaris recorre a uma surpreendente concepção individualista para explicar esta banalidade do mal. O agente do genocídio escolhe renunciar ao pensamento sob o pretexto de obediência às ordens de um superior. Seja este um ditador ou um grupo social. Para o psicanalista, nos dois casos a culpa é exclusiva do sujeito, que se rende à tentação de não pensar para se abrigar sob imposições de outrem.
Esta interpretação da responsabilidade pelo genocídio, ou por seu fenômeno embrionário, a intolerância, nos impossibilita a compreensão deste mal que aflige hoje a sociedade brasileira. Talvez o erro seja induzido pela cômoda solução cognitiva, capaz de obliterar a falta ética de um coletivo inteiro, que consiste em responsabilizar apenas seu líder carismático. Mas mesmo nos casos em que este líder desempenha o protagonismo, é sempre o grupo nele representado que o empodera para tal. A submissão dos agentes individuais do genocídio ou da intolerância é, pois, sempre a um poder social.
A renúncia individual ao pensamento exige um pré-requisito que Calligaris parece ignorar. A saber, que só é possível renunciar a algo que se possui. O caso de Eichmann e de todos os combatentes da vacina ou defensores da Cloroquina, no Brasil contemporâneo, se refere a pessoas que não tiveram a oportunidade de constituir a faculdade do pensamento crítico. Esta capacidade, ao contrário do que a antropologia individualista de Calligaris supõe, só pode se formar no processo de interação social.
O autor encerra o texto com uma indagação eivada de pressupostos artificiais: “Para qual razão psíquica fundamental teríamos todos uma predisposição a sermos seres estúpida e covardemente coletivos?” Já comentei alhures que a cooperação social constitui uma estratégia adaptativa superior ao comportamento individual. O pensamento crítico rigoroso só pode, portanto, nos levar à condição de seres inteligente e corajosamente coletivos, para inverter diametralmente os pressupostos de Calligaris.
A humanidade é dotada de um empuxo à vida social. Por um lado, isto pode se constituir a partir de afinidades sólidas, que se produzem junto com o desenvolvimento da faculdade do pensamento crítico e da capacidade de sublimação dos impulsos primários em estéticas sofisticadas. Produzem-se assim grupos dotados de coesão forte (adaptando a categoria da Física, força forte), porque baseada em afinidades cognitivas, valores éticos e estéticas desenvolvidas ao longo de demorado percurso educacional. Invariavelmente, estes coletivos são detentores do que Pierre Bourdieu chamou de capital cultural, que opera como critério de distinção e produz arrogância intelectual.
Há, por outro lado, grupos que se reúnem com base na “força fraca”, isto é, desprovidos de afinidades profundas. Esta coesão fraca reúne, por exemplo, pessoas que nada mais compartilham senão a preferência por um escudo em camisa de futebol, uma cor (vermelha; verde e amarela), uma posição política (direita; esquerda), dentre outros mil critérios possíveis. O confronto violento com o outro – o holocausto, as guerras entre torcidas organizadas, a intolerância política que vivemos hoje no Brasil decorre da força fraca. É o fato de não existirem afinidades profundas, substantivas, produzidas a partir de estéticas altamente sublimadas e valores éticos sólidos que se formam no cultivo educacional (não necessariamente escolarizado), que leva o grupo a exigir de seus membros provas sucessivas de fidelidade. Na medida em que o grupo não compartilha destas afinidades, é o confronto com grupos diferentes que produz a coesão. Daí também o caráter fraco, precário desta coesão.
É esta dinâmica que a meu ver explica Eichmann, o totalitarismo, a intolerância. A formação de grupos destituídos de afinidades substantivas, condenados à intolerância como única prova de fidelidade, ocorre porque a faculdade do pensamento crítico e a estética coletiva que a envolve, os aspectos sublimados da cultura, da arte, da ciência não se constituem espontaneamente. Não se pode renunciar a estas capacidades, como crê Calligaris, antes de desenvolvê-las, mediante socialização educacional.
Eis o problema estrutural do Brasil de hoje e da Alemanha, do início do século XX! Foram precisamente os excluídos da intelectualidade judaica (Hitler incluído) que se ressentiram contra ela. Militares, grupos baseados na virilidade belicosa, incapazes de fruição estética e reflexão crítica sofisticada, se revoltaram contra a intelectualidade da República de Weimar. Sabe-se que muitos deles eram letrados; mas não é o cultivo intelectual puro e simples que nos oferece remédio ao totalitarismo e à intolerância. Antes, são os valores éticos que deveriam acompanhar este processo de formação, dos quais faz parte a humildade intelectual.
Onde residem, pois, as origens da intolerância? Precisamente na atitude expressa no texto de Calligaris. No comportamento daqueles que, produzindo identidades coletivas baseadas na afinidade forte do pensamento crítico e da estética sublimada desprezam aqueles que ainda precisam desenvolver as faculdades intelectuais. É no exercício da arrogância, nas escolas, nas universidades, nos cinemas, nos teatros, nas galerias de arte, nos museus, nos lugares que produzem a identidade dos intelectuais que estes mesmos sonegam as oportunidades educacionais àqueles que dela mais necessitam. Na medida em que estas possibilidades de formação abrangente são sonegadas à população média, estão dadas as condições para o ressentimento e a intolerância, que pode subir sua escalada até o totalitarismo e o genocídio.
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