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OS BARES DO LEBLON

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias

Cleber Dias


Ao arrepio de todas as recomendações, na última semana fotos e filmagens exibiram bares lotados no Leblon, bairro up to date na Zona Sul do Rio de Janeiro. Em uma dessas filmagens, como que apenas para amplificar o choque, ouve-se uma voz ao fundo dizendo, “tudo voltando ao normal, Graças a Deus. Vai tomar no cú máscara. Vai tomar no cú corona. É isso aí, meu irmão. É isso aí...”.


Além dos motivos por trás desse desprezo ao bom senso, que tem sido escrutinado por psicólogos sociais, outros elementos dessas cenas servem para uma breve reflexão.


O primeiro é o óbvio recorte de classe da situação. Conforme resumiu com ironia e bom humor um amigo em suas redes sociais, “achar absurdo e cobrar fiscalização no Leblon é mole! Quero ver dar uma passadinha em Bangu!”.


De fato, desde o início, alguns comércios de vários bairros das periferias não aderiram nem por um dia sequer as recomendações de fechamento do comércio. Nesse sentido, a opinião pública que se pretende ilustrada ao se escandalizar diante da reabertura dos bares nos bairros ricos, exibe pelos bairros pobres o típico descaso que marca historicamente a postura geral diante desses locais. Trata-se de uma espécie de sensibilidade seletiva, que involuntariamente torna invisível os que vivem do lado de baixo. Bem entendido, é uma questão de sensibilidade e não de posição social, de modo que mesmo pessoas que habitem no lado de baixo podem exibir a mesma cegueira.


Esse descanso, no entanto, não é apenas produto de indiferença. Ao contrário, é fruto de uma larga e profunda diferença nas disposições subjetivas de cada um. Regra geral, grupos mais intelectualizados, independente da parte da cidade em que vivam, tendem a orientar suas vidas por valores e visões de mundo que são muito peculiares, considerando-se os valores e visões que regem a vida da maior parte da população. Nesse sentido, pode-se dizer que grupos sociais diferentes vivem em mundos sociais diferentes, mesmo que sejam vizinhos. Mais ainda, quanto maior as desigualdades de uma sociedade, maior tendem a ser esses espaços de diferenças.


O resultado acumulado dessas diferenças frequentemente é a incapacidade de compreensão. Conforme velho ensinamento dos antropólogos, a aparência de irracionalidade de certos comportamentos é tão somente a expressão de uma racionalidade que lhe escapa. Em outras palavras, não são necessariamente irracionais certos comportamentos que assim lhe parecem. É você quem não os compreende bem.


Reinvindicações de superioridade moral ou intelectual não superarão as diferenças que produzem esse estado de incompreensão, tampouco pavimentarão pontes capazes de criar ligações entre esses mundos. Na verdade, quanto mais duras as críticas e quanto mais arrogantes os críticos, mais alto fica o muro que os separa. A postura de superioridade de quem fica em casa e ordena que todos os outros façam o mesmo, como se essa fosse a única maneira de ser altruísta, apenas exibe a impossibilidade prática de sermos todos solidários uns com os outros. De outro modo, empatia e talvez um pouquinho de generosidade possivelmente seriam boas maneiras de iniciar esforços para compreensões recíprocas, desde que esse desejo de compreensão seja verdadeiro. Para parafrasear meu amigo, diria que achar absurdo e apontar o dedo é mole. Quero ver fazer um esforço e se colocar no lugar dos outros.


Depois de quatro meses em uma quarentena que não vê luz no fim do túnel, várias pessoas estão fartas. Não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Cenas de aglomerações imprevidentes apareceram também na culta e educada Europa. A voz daquele vídeo, não por acaso, transmite certo alívio sincero.


O apelo para a reabertura do comércio não se reduz apenas a motivações econômicas, mesmo quando tais reinvindicações são de ordem econômica. Esta seria uma maneira simplista de compreender o comércio e a economia. Mais do que simples trocas monetárias, economia e comércio dizem respeito a relações sociais. Em última instância, portanto, são as relações sociais o que se quer de volta quando se reivindica a reabertura do comércio. Esse é um desejo não apenas legítimo, mas humanamente compreensível. Pode-se beber cervejas e comer aperitivos em casa, é certo, ainda que sem o singular gosto da chapa engordurada. Mas não se pode confraternizar com os amigos da mesma forma que se pode fazê-lo em espaços públicos como os bares. É apenas um exemplo, que fica no caso que polemizou os últimos dias, mas se aplica também aos shoppings, aos estádios, aos teatros e cinemas. Todo ato de consumo encerra algo mais do que apenas consumismo.


Se quisermos extrapolar, reservando-se as devidas proporções, pensemos nos que fazem sexo com parceiros ou parceiras ocasionais sem preservativo, mesmo sabendo que um vírus para o qual não há vacina anda à espreita por aí. Atire a primeira pedra quem nunca pecou.


Para agravar, as orientações dos poderes públicos são desencontradas, quando não abertamente contraditórias, o que fortalece a desconfiança permanente que tem caracterizado as relações entre Estado e sociedade no Brasil. Porque afinal alguém que sempre fora desprezado pelo Estado, visto como instância de corrupção ou de privilégios, deveria agora obedecer às recomendações vindas dali?


Não me entendam mal. Não estou advogando a reabertura de bares. Pessoalmente, mesmo se tais espaços voltassem a funcionar, não iria frequenta-los tão cedo. Ainda me parece algo arriscado, que evitaria a todo custo. Estou apenas afirmando que o comportamento dos que correm para um bar com seus amigos é mais compreensível do que o tribunal da internet faz parecer. Paradoxalmente, o distanciamento social é o que nos priva da necessária empatia para compreender comportamentos diferentes dos nossos. Esse distanciamento, porém, não começou com a chegada do coronavírus, do mesmo modo que não acabará quando a epidemia passar. Nossa jornada nem começou ainda.

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