Cleber Dias
Em meio a tantas tragédias, foi uma lufada de ar a notícia de que o Instituto Butantã desenvolveu uma vacina. Depois soubemos que a empreitada não foi inteiramente nacional, dado que vários elementos da vacina foram desenvolvidos em laboratórios de outros países, mas não importa. Todos os melhores centros de pesquisa do mundo empregam mão de obra de outros países e tiram proveito de pesquisas e tecnologias desenvolvidas nos quatro cantos. Isso não tira o brilho de nenhuma realização científica e também não há de tirar dos cientistas do Butantã.
O governador de São Paulo logo tentou utilizar-se da conquista politicamente. Isso é normal. Ao contrário do que ele próprio dizia, João Doria é um político e políticos buscam associar acontecimentos positivos a seus governos, ao mesmo tempo em que tentam atribuir responsabilidade pelos acontecimentos negativos aqueles a quem fazem oposição.
No entanto, qual a responsabilidade de João Doria na vacina do Butantã? Desde que tomou posse no Palácio dos Bandeirantes, em janeiro de 2019, Doria tentou diversas vezes cortar recursos antes destinados ao prodigioso sistema de ciência e educação superior de São Paulo. Diferente da imagem que o governador de São Paulo tenta construir agora, ele não é um farol de iluminismo, comprometido e engajado com os feitos da ciência. Sempre que pôde, Doria tentou drenar recursos das universidades e institutos de pesquisa de São Paulo. Só não o fez inteiramente porque foi obstruído por outras coalizões urdidas dentro do sistema político de São Paulo. Foi a política de São Paulo, que é muito maior que Doria, quem criou as condições para a produção dessa vacina. Assim, a vacina do Butantã foi feita apesar de João Doria, não por causa dele.
Algo semelhante deve ser dito com relação a Bolsonaro e ao governo federal. Nosso Sistema Único de Saúde já vacinou mais pessoas do que a Alemanha, a França, a Itália, o Canadá e Israel, que são países muito mais ricos e com problemas de infraestrutura infinitamente menores do que os nossos. Em certos casos, o Brasil já vacinou mais que o dobro do que alguns desses países. Apesar dos números da nossa vacinação ainda serem muito menores do que gostaríamos, é um feito extraordinário. É ainda mais extraordinário quando lembramos do homem que nos governa. O relativo sucesso da vacinação brasileira realiza-se apesar de Bolsonaro, não por causa dele.
O poder político depositado em governantes eleitos é sempre limitado e os indivíduos nesses cargos não fazem o que querem, seja o bem ou seja o mal. A ideia de que Bolsonaro é responsável pela tragédia que vivemos é tão exagerada quanto a imagem de que Doria é o herói da vacina do Butantã – ainda que omissões e negligências sejam uma parte relevante dessa história. Se tivéssemos outro presidente, mais racional e politicamente apto, com mais vocação e capacidade de liderar e coordenar ações, possivelmente estaríamos em situação melhor, mas provavelmente não muito melhor. São limitações estruturais de diversas ordens o que nos condena a esse morticínio. Nenhuma dessas limitações seriam facilmente contornadas, independente de quem ocupasse o Palácio do Planalto.
Se tivéssemos um presidente que usasse máscaras, lavasse as mãos, evitasse aglomerações, pedisse a seus compatriotas que ficassem em casa e estivesse disposto a vender as calças para oferecer auxílios emergenciais, isso de forma alguma resultaria que as dezenas de milhões de favelados e subempregados do Brasil obedeceriam candidamente a essas sugestões. Novamente o exemplo de São Paulo é instrutivo. Em São Paulo, como em outros lugares, feriados foram antecipados a fim de facilitar o isolamento social. O que fez então a população? Engarrafou as estradas em direção ao litoral, antes de se aglomerar nas areias das praias. Isso é Brasil meus caros. Nossa gente não é conhecida por ter deferência a autoridades, seja um siderado em Brasília, seja um engomadinho em São Paulo.
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Charge de Cicero, Folha do Litoral
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