Dentre as muitas dificuldades que marcam o cotidiano escolar de professores e professoras de educação física do Brasil está a aflição a respeito dos propósitos desta disciplina. Para que serve, afinal, a educação física na escola?
Para a maioria das pessoas alheias ao que se passa nas faculdades de educação física do país a pergunta pode parecer desconexa e até sem sentido. Muitos talvez tenham por óbvio que educação física serve para promover a educação do físico, isto é, a educação motora do corpo através de exercícios, danças, esportes, jogos recreativos ou quaisquer outras atividades que exijam movimento.
Não é necessariamente este, porém, o entendimento propagado por alguns importantes livros-textos adotados na formação de professores de educação física.
Nas últimas três ou quatro décadas, disseminou-se no Brasil a ideia de que o propósito da educação física deveria ser o de estimular a formação de uma consciência crítica a respeito do mundo social que nos cerca, onde os objetivos ligados à educação do corpo propriamente dito estão subordinados a esses nobres e elevados ideais.
Em princípio, há bastante pertinência em formulações desse tipo. O objetivo de qualquer processo educativo, em última instância, deve mesmo ser a formação de um ser humano pleno e íntegro, senhor de suas capacidades e apto a compreender e agir no mundo em que vive.
Na prática, contudo, esse palavreado bonito esconde um conjunto de contradições que têm como consequência a confusão e o esvaziamento pedagógico dos sentidos da educação física na escola.
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No limite, o aprendizado de qualquer conteúdo escolar é sempre apenas um meio para a formação de indivíduos plenos e íntegros, conscientes a respeito da realidade que os cerca e aptos a agirem nele com sabedoria e equilíbrio. Não decorre daí, entretanto, que o aprendizado de tais conteúdos seja irrelevante. O pleno domínio das capacidades de leitura e escrita, por exemplo, é uma condição necessária para o integral exercício da cidadania, de modo que os fins estão inescapavelmente subordinados aos meios.
Na verdade, o aprendizado de determinados conteúdos escolares de modo algum está em contradição com uma formação integral, antes o contrário, a tomada de consciência do mundo depende da garantia do acesso a esses conteúdos. Um cidadão analfabeto, afinal, estará prejudicado nas suas capacidades de compreender o mundo e assim também no processo de formar sua própria consciência crítica.
Algo semelhante pode e deve ser dito com relação à educação física. Cada vez mais, cientistas de diversas especialidades enfatizam o papel crucial que o movimento e as atividades físicas desempenham não apenas na saúde dos indivíduos, no que já é um consenso fora da dúvida razoável, mas também na própria capacidade cognitiva.
O livro Neurociencia del cuerpo, da neurocientista espanhola Nazareth Castellanos (infelizmente ainda sem tradução para o português), apresenta e sintetiza achados científicos dessa especialidade acumulados nos últimos 15 ou 20 anos. Segundo nos fala a autora, esse conjunto de descobertas desafiam a histórica compreensão ocidental de que a mente controla o corpo. Com efeito, argumenta Castellanos, essas pesquisas têm demonstrado o modo como o corpo esculpe a mente.
Assim, conforme vão nos demonstrando os neurocientistas ao redor do mundo, um educador interessado em estimular à formação de uma “consciência crítica” entre seus alunos, seja lá o que isso queira dizer, deve começar dando bastante atenção ao corpo e ao movimento.
Na contramão dessas evidências, contudo, “teorias da educação física no Brasil”, se é que se pode chama-las assim, de certo modo subestimam o papel e o lugar do corpo e do movimento no processo educativo. Ao invés disso, preconiza-se competências cognitivas, conteúdos teóricos ou às vezes até mesmo as obsoletas provas escritas ou aulas expositivas em sala, em detrimento da experiência corporal e prática nos pátios, quadras e terrenos baldios – que infelizmente ainda é um local onde acontecem aulas de educação física no Brasil. Neurocientistas como Nazareth Castellanos chamariam essa visão de educação física de “cérebro-centrada”.
A curiosa insistência com que alguns estudiosos da educação física às vezes secundarizam o movimento e as vivências práticas com o próprio corpo corre o risco de acentuar o atraso acadêmico e a irrelevância pedagógica que já marcam essa disciplina nas escolas do país. A reflexão sobre o papel e os propósitos da educação física escolar precisa urgentemente entrar no século 21. E a torrente que arrasta a nossa época nos diz que não apenas a escola, mas toda a nossa sociedade, precisa redescobrir o corpo.
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